Os animais e seus homens
Uma concepção biocentrista de um (nem tão) novo movimento propõe repensar os caminhos que nos levaram a entender a vida de animais como produtos passíveis de compra e descarte
Qual a diferença entre seu hambúrguer e seu cachorro? Aliviar a dor de uma cobaia que em breve terá ácido jogado em seus olhos, torna o procedimento justificável? Os especialistas ouvidos pela edição de hoje do Caderno G Ideias discutem o que faz com que os animais tenham direitos, os limites da intervenção humana e os efeitos que colhemos com nossa relação pouco saudável com os animais. São estudiosos que dedicam sua vida a criar novas fronteiras na filosofia e na ética, tirando do homem o centro gerador dos valores e focando na vida, entendendo o ser humano apenas como mais um animal neste imenso bioma chamado Terra.
De uma cultura que se restringia a pequenos rebanhos de ovelhas cuidadas por pastores nômades, há cerca de 10 mil anos, evoluímos para fazendas-indústria, onde animais crescem confinados, em tempo recorde, alimentados com hormônios e sem se movimentar.
Um olhar sobre as crueldades denunciadas nos abatedouros, circos, laboratórios e na indústria de peles, revela que algo parece ter dado errado na relação dos homens com os animais.
A partir da década de 1970, uma corrente filosófica começou a se desenvolver para pensar uma nova ética para a questão, principalmente após o lançamento do livro Libertação Animal (Ed. Lugano), de Peter Singer, em 1975, que estabeleceu conceitos para o movimento homônimo.
/ Em Marley e Eu (2008), um cão labrador é tratado como integrante da família /
Esta luta se expandiria contestando os argumentos da indústria e da própria ciência, considerando todos os seres como sujeitos e não mais como produto, pressionando governos e empresas a mudarem suas posturas e definindo um novo paradigma no tratamento para com os animais.
Senciência
Segundo um dos maiores especialistas em Bioética do mundo, o escritor e filósofo Tom Regan, em seu livro Jaulas Vazias (Ed. Lugano), afirma que o que faz com que os animais tenham direitos são os mesmos motivos que fazem com que bebês ou pessoas com limitações físicas ou intelectuais os tenham.
Apesar de não fazerem uso da mesma linguagem e não terem o mesmo entendimento de mundo que a sociedade que os cerca, têm consciência do que está à sua volta e se importam com o que acontece a eles, quer os outros se importem ou não.
Esse conceito, definido pelo filósofo como "sujeitos-de-uma-vida", é o que faz com que animais tenham direitos: sua senciência, a consciência de si mesmo e de estar no mundo, além do instinto de preservação de sua integridade.
De acordo com a especialista em Bioética Sônia Felipe, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estar vivo e ter a noção de si no ambiente não é prerrogativa dos humanos e considerar esse fato nas sociedades animais eleva a dignidade humana. "A mesma lógica que aplicarmos contra os interesses dos animais pode ser empregada contra nós, porque, quer queiramos ou não, somos animais. Quando pensamos que eles têm um estatuto moral próprio, pensamos que nossa condição também o tem. Assim, ao invés de nos rebaixarmos, dignificamos nossa estatura moral.", afirma.
A lei é a lei
O artigo 32 da Constituição Brasileira protege animais de abusos que ponham em risco sua integridade física e psicológica. Poucos países trazem no texto constitucional a garantia do bem estar dos animais.
O escritor Laerte Levai, promotor de Justiça de São José dos Campos e especialista em Bioética pela Universidade de São Paulo, defende uma posição crítica em relação à não-aplicação das leis contra maus-tratos aos animais de produção.
Segundo ele, a relação homem/animal tem sido marcada pelo estigma do domínio e da servidão, dentro do qual as espécies não-humanas são desconsideradas em sua dignidade.
"A legislação, por melhor que seja, nunca será suficiente para a mudança de mentalidades. Isso porque o direito envolve coerção, enquanto a sensibilidade humana vem da educação", ressalta.
Seu cachorro e sua comida
Em O Dilema do Onívoro (Ed. Intrínseca), o jornalista estadunidense Michael Pollan diz que, quanto maior a distância das duas pontas da cadeia alimentar humana - o solo e a prateleira (dos supermercados, açougues e afins) - mais ignorantes somos em relação ao que comemos.
Esse é o paradigma que explica, segundo Sônia Felipe, porque gostamos de nossos cães e gatos, mas não estabelecemos a mesma empatia com relação a bois e peixes.
"Os animais usados como comida são desconhecidos da mente humana, especialmente a formatada nos centros urbanos. Mas as pessoas que têm animais em sua companhia, acompanham a agonia e as alegrias desse animal no cotidiano. Feito isso, já não suportam a ideia de infligir a esse animal qualquer tipo de dano, dor ou sofrimento", diz.
Para a professora, esse processo alienatório extingue a culpa do consumo, pela diferenciação de que uma espécie tem mais valor do que outra, levando em conta sua utilidade ao ego humano. " Abraçar um tipo de animal e passar a faca no pedaço de carne de outro no seu prato, torna-se algo natural. Há uma distância enorme entre o que a mente produz, ao elaborar a percepção do animal como um ser vivo senciente, que precisa receber proteção e cuidados, e a percepção da carne, alimento propagado como bom e necessário para o organismo humano", opina.
Ricardo Ampudia, especial para a Gazeta do Povo
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