Mídia dardeja (contra) o vegetarianismo - Paula Brugger
A grande mídia tem expressado recentemente, de forma efusiva, o que parece ser o receio de uma parcela da sociedade: a possibilidade de as dietas vegetarianas se difundirem. E, para tanto, contra-ataca.
Entre o fim de março e o início deste mês de abril de 2011, foram publicadas pelo menos três matérias na grande imprensa que, se não tiveram o propósito de denegrir o vegetarianismo em suas diversas formas, conseguiram, pelo menos, confundir os leitores no que tange à viabilidade e aos benefícios de tais dietas. Seriam matérias pagas? Ou apenas sem fundamento, isto é, escritas por pessoas ignorantes no que toca às dietas vegetarianas? Não sabemos. Mas, qualquer que seja a resposta, é impossível não lembrar a máxima: a ignorância é vizinha da maldade.
Das três matérias citadas antes, duas foram publicadas na Revista Época, em março de 2011 [1]. Em uma delas, intitulada “Agora sou vegetariana” [2], a autora, Cristiane Segatto, apresentada pela revista como “repórter especial, que escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo”, lamenta a decisão de sua filha de 10 anos de (tentar, pois foi impedida por ela!) aderir à dieta vegetariana. Escreveu a autora em tom melodramático: “Meu mundo caiu quando minha filha de 10 anos disse isso. Onde foi que eu errei? Onde eu estava quando esses pensamentos tortos começaram a entrar na cabecinha dela?” “Quem a salvaria de tal sandice?”, entre outras bobagens.
A matéria, até então, já estava bastante mal encaminhada, mas a autora parece ter feito questão de deixá-la ainda pior. Embora tenha reconhecido que se preocupar com os animais era uma coisa bacana por parte da sua filha, concluiu seu (des)informativo texto afirmando que (sic), “infelizmente, ter uma alimentação restrita não é saudável. Como humanos que somos precisamos comer carne para ter todos os nutrientes necessários para a nossa saúde”.
É interessante destacar que a autora menciona o trabalho sério e competente do Dr. Eric Slywitch, da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), mas preferiu acreditar nas velhas fórmulas sem respaldo científico, repetidas ad nauseam por médicos que não estudaram o assunto. De fato, não só resolveu não dar crédito à valiosa opinião do Dr. Eric, mas deixou de consultar fontes importantes e até conservadoras, como a American Dietetic Association (ADA), que, em seu Journal of the American Dietetic Association, de julho de 2009, volume 109, número 7, assegura a viabilidade das dietas vegetarianas, incluindo as veganas, em todas as fases da vida, e até para atletas [3]. Isso apenas para citar um exemplo de um documento respaldado por inúmeros estudos (são cinco páginas só de referências bibliográficas) e que teve o aval de diversos pesquisadores que, ao contrário da maior parte dos médicos e nutricionistas ativos no mercado de trabalho, estudaram o assunto. E nem vou entrar na seara dos malefícios, também comprovados, que envolvem a ingestão de carne. Fico por aqui, no caso dessa matéria.
A outra, também da Revista Época, intitulada “Quem inventou o cachorro vegetariano?”[4], de Mario Marcondes, veterinário, diretor clínico do Hospital Veterinário Sena Madureira, trata da possibilidade de oferecer dietas vegetarianas a animais como cães, o que em princípio parece bem intencionado. Mas ela contém algumas impropriedades e argumentações esdrúxulas que tem início já na chamada para a matéria, onde se lê:
“A moda de negar carne a animais carnívoros mostra que a humanização (cada vez maior) dos bichos domésticos não tem limites – e pode prejudicá-los”.
Em primeiro lugar, não se trata de moda, e sim de preocupação de cunho ético. Em segundo lugar, não se trata de humanização, ou antropomorfização (como depois o autor diz no texto), no sentido de compulsão de imputar atitudes e sentimentos humanos aos animais, como é o caso, isso sim, de roupinhas, laços de fita e outros adornos que muitas clínicas veterinárias adoram vender (também mencionados no texto, mas de forma a dar a entender que estão no mesmo patamar das atitudes de cunho ético). E, por último, ressaltar que tal prática (o vegetarianismo) pode prejudicá-los, em vez de beneficiá-los (quando o próprio autor cita exemplos de benefícios no texto).
A matéria expõe também alguns contextos de interações dos humanos com os cães, muitas das quais maléficas para eles, bizarras, ou antiéticas em algum sentido, como é o caso da cadela Laika, enviada como “heroína” (sic) para morrer em uma expedição espacial famosa, ou o de Lassie, uma cadela da raça rough collie treinada para divertir os humanos na indústria cinematográfica. O texto cita ainda contextos questionáveis ou bizarros, como uma herança milionária recebida por um cão maltês e um velório de uma cadela da raça west white highland terrier.
Todavia, o que mais chama a atenção é o “silêncio” no que concerne aos malefícios das rações com carne, teoricamente adequadas para esses animais, muitas das quais são de péssima qualidade. Se algum leitor se sentiu compadecido ao ler que alguns carnívoros foram/ estão sendo obrigados a ingerir uma dieta vegetariana, lembro que, nos casos das rações de má qualidade, os pobres animaizinhos são igualmente forçados a ingerir um alimento que não escolheram, e que tampouco conta com qualquer garantia em termos de co-evolução. Concordo que tem gente estúpida o suficiente para obrigar seu cão ou gato a manter uma dieta vegetariana não-balanceada (assim como fazem consigo mesmos, para depois alegarem que a dieta não é saudável) e, com isso, causar prejuízos à saúde do animal. Nesse sentido, vale o questionamento. Mas não abordar a questão dos perigos das rações que contêm carne é, no mínimo, estranho (talvez alguns anunciantes de tais revistas não tenham permitido tal questionamento).
Como no caso da matéria anterior, muito ainda poderia ser dito. Mas encerro comentando um argumento do autor de que um animal da ordem Carnivora não poderia ou deveria ser convertido a uma dieta vegetariana: os pandas, por exemplo, comedores de bambu, também pertencem à ordem Carnivora. Mas parece que evoluíram com o tempo (he,he).
O terceiro texto, sobre o qual teço um rápido comentário, foi publicado na prestigiada Folha de São Paulo [5] e o autor, Ricardo Lísias, é doutor em literatura brasileira pela USP e escritor.
A “chamada” para a matéria diz que o escritor, que encarou quatro dias de “ecologista radical”, conta que se sentiu fraco com a dieta vegana (sic), além de não ter topado fazer xixi só no banho.
Essa talvez seja a pior matéria entre as três. O autor ensaia um estilo pretensamente divertido ao escrever, mas seu humor é pesado, como diriam os franceses. Sem falar na profusão de boçalidades que ali capeiam soltas.
Para começar, feliz será o dia em que os ecologistas que se autointitulam radicais, ou rotulados como radicais por outras pessoas, forem veganos. Eu, pessoalmente, não conheço nenhum! E, pasme o leitor, sou professora de um departamento de Ecologia de uma universidade federal. De fato, não há nada mais irreconciliável do que ecologistas radicais (sic) e veganos, já que estes últimos são geralmente movidos pela ética dos direitos dos animais, um assunto considerado menor, ou até risível, por parte dos tais ecologistas do naipe citado pelo autor. Mas aqui reconheço que Ricardo Lísias pode ter feito um favor aos animais: associar os ecologistas – quase todos churrasqueiros inveterados – à dieta vegetariana, algo que seria coerente.
O autor comete injustiças e afirma diversas inverdades e informações equivocadas quanto à dieta vegana. Uma das primeiras foi a de que almoçou 750 g de alimento exclusivamente vegetal e não ficou satisfeito, além de reclamar (diversas vezes no texto) que ficou irritado, com medo de enfraquecer, etc. Além de ser muito estranho alguém enfraquecer tão rapidamente em decorrência de uma dieta vegana conduzida num período tão exíguo (quem sabe o autor já estava com a saúde debilitada ao tentar a dieta nova?), a primeira e óbvia pergunta que se coloca é se seu prato estava composto de forma correta, sobretudo em termos calóricos. Todos nós concordamos que pratos pouco calóricos não saciam a fome. Mas não está escrito em lugar nenhum que a dieta vegana tem que ter um baixo conteúdo calórico. Talvez desconfiado de que possa ter sido essa a causa da sua fome, o autor diz que preparou uma “feijoada vegetariana” que ficou um horror (o autor foi, contudo, salvo por uma banana com quinua – ufa!). Ora, mais uma vez, a cozinha vegana não pode ser culpada pela baixa performance culinária de alguém que não conhece minimamente o assunto. Aliás, nem precisa conhecer. Basta bom senso e boa vontade. Até cozinheiros preguiçosos e sem expertise, como eu, conseguem preparar um prato rápido com massa à base de sêmola e cortes finos de abóbora passados no alho e no azeite de oliva, numa panela de ferro. Pode-se adicionar meia dúzia de castanhas, se houver em casa, ou não. Um prato assim não precisa (nem deve!) pesar 750g, repõe as energias e sacia a fome, mesmo voltando de um treino de Kung Fu de uma hora e meia!
Mas o autor não abandona seu pacote de maldades contra o veganismo: se pergunta se não haveria algum fetiche no vegetarianismo radical (ele parece não compreender as motivações de cunho ético subjacentes à questão), e insiste que a dieta vegana (apenas em seu segundo dia!) está mexendo (negativamente, bem entendido) com ele: se sente irritado e se pergunta se poderá ficar burro? Essa foi uma pérola e tanto! De fato, já ouvi um argumento semelhante por parte de uma pessoa pouco instruída, mas confesso que me surpreendi no caso do doutor Ricardo. Vale salientar que, como no caso anterior – o de “ficar fraco” - o questionamento deve se remeter a um tempo anterior ao da dieta vegana por ele adotada naquele período exíguo. E, no caso, eu usaria a palavra “estúpido” em lugar de “burro”, por ser essa última uma expressão especista que denota a dicotomia cultura-natureza, muito presente mesmo nos meios intelectualizados.
O autor finaliza seu diário com mais uma série de afirmações bobas, como dizer que sonhou com um boi que, mesmo abatido, continuava gritando com ele, e com uma horta que o atacou, o que o fez se sentir ridículo (nisso eu concordo!). Isso, sem explorar outras passagens infelizes como a que ele expõe, sem pudor, seus preconceitos para com os chineses.
Para terminar, ele encerra a tola peça jornalística com aquelas clássicas afirmações típicas de pessoas totalmente desinformadas acerca dos motivos que movem o veganismo, tais como: “Não acho cruel extrair leite de um animal para consumo” e, “até o ovo?”, como se tais “produtos” fossem resultantes de cadeias produtivas ética, política e ecologicamente corretas. Por último, ainda diz que o veganismo é caro. É claro que, se frequentarmos somente restaurantes elegantes, ou se a parte mais expressiva de nossos pratos for composta por produtos como tofu, nozes macadâmias e cogumelos, o preço da refeição vai subir. Mas, de novo, em nenhum lugar está recomendado que as refeições veganas tenham que ter tais ingredientes. Num bom e barato “sacolão” (feirão de legumes e vegetais), é possível encontrar ingredientes para preparar pratos maravilhosos e nutricionalmente adequados.
Embora o autor tenha pretensamente tentado aderir à dieta vegana, entre outras atitudes ecologicamente corretas, no que se refere ao veganismo, sua tentativa poderia ser equiparada à de alguém que tenta fazer um churrasco (para situar a questão num contexto bem conhecido) jogando a carne - sem sal e com plástico e tudo - em cima de uma grelha. Também não daria certo.
Concordo com o teor da última frase do autor (embora não com o sentido expresso no texto), de que o problema urgente é a fome. Sim, a fome de toda a humanidade e dos indefesos animais predadores de topo poderia ser saciada, caso adotássemos uma dieta vegana. Ah, sim, esqueci que o autor não entenderia qual é a conexão entre as questões que acabo de afirmar. Explico: se não devastássemos tantos ecossistemas naturais - habitats de tais animais e de tantas outras espécies - para plantar grãos (commodities) para dar continuidade à pecuária, poderíamos acabar com a fome no planeta: a dos humanos (de forma direta) e a dos predadores de topo (ao garantir acesso aos seus territórios).
Já disse isso uma vez, mas repito: é lamentável que, na chamada era da informação e do conhecimento, sejam publicadas matérias eivadas de afirmações equivocadas, ultrapassadas e sem respaldo científico no que tange à saúde humana (tanto individual quanto pública), animal e planetária. É ainda triste constatar que os principais meios de comunicação sejam acríticos ou coniventes com matérias que não apenas atrasam a construção de um mundo mais sustentável nos planos ético e ambiental, mas, de fato, obstruem quaisquer avanços em todos esses planos. Quem escreve tais matérias são, teoricamente, pessoas de alto gabarito intelectual que têm nas mãos meios de comunicação que atingem um grande número de pessoas. Mas elas andam sem freios: podem escrever qualquer coisa, uma vez que não há quem as questione (ou será que esses conteúdos vêm ao encontro do que almejam os grandes anunciantes de tais revistas?).
Enfim, como disse um ilustre colega da UFSC, “depois de o veganismo (frente à grande mídia) ter subido de ´elevador´ através dos Obama [6], os veganos tinham que ser chamados à terra”... Haja paciência!
Agora, por favor, me deem licença que estou saindo para meu treino de Kung Fu (sim, veganos têm muita energia para gastar!). Permitam-me desfrutar desse oásis repositor de boas energias, num mundo onde pululam contextos repletos de aleivosidades, ignorância e más intenções.
Notas:
1. Não é meu objetivo aqui fazer uma análise sistemática das três matérias jornalísticas citadas antes, mas apenas comentar alguns trechos.
2. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI221142-15230,00-AGORA+SOU+VEGETARIANA.html
3. No original (p.1266): It is the position of the American Dietetic Association that appropriately planned vegetarian diets, including total vegetarian or vegan diets, are healthful, nutritionally adequate, and may provide health benefits in the prevention and treatment of certain diseases. Well-planned vegetarian diets are appropriate for individuals during all stages of the lifecycle, including pregnancy, lactation, infancy, childhood,and adolescence, and for athletes.
4. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI221339-15228,00.html
5. Folha de São Paulo, Diário de um ecochato; Cotidiano; domingo, 17 de abril de 2011. http://consciencia.blog.br/wp-content/uploads/2011/04/foia-alfacista.jpg
6. Referência ao fato de a primeira-dama estadunidense Michelle Obama ter solicitado uma dieta vegana quando da vinda da família Obama ao Brasil, em março de 2011.
Paula Brügger é professora do Deptº de Ecologia e Zoologia da UFSC. É graduada em Ciências Biológicas, possui especialização em Hidroecologia, mestrado em Educação - Educação e Ciência, e doutorado em Ciências Humanas - Sociedade e Meio Ambiente. Ministra as disciplinas Biosfera, sustentabilidade e processos produtivos, e Desenvolvimento, Tecnologia e Meio Ambiente na graduação, e Gestão da Sustentabilidade na Sociedade do Conhecimento no Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento. É autora dos livros “Educação ou adestramento ambiental?”, em terceira edição, e “Amigo Animal – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente”. Coordena o projeto de educação ambiental “Amigo Animal”, oferecido para as escolas da rede municipal como tema transversal. Atua principalmente nos seguintes temas: educação ambiental; interdisciplinaridade e paradigmas de ciência; desenvolvimento sustentável; relação dos seres humanos com os outros animais como relação sociedade-natureza.
Fonte: www.vegetarianismo.com.br/
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