PELO EGO OU PELOS ANIMAIS?
Sempre escrevo textos com conteúdos da área médica e nutricional, mas nesse texto vou abordar o assunto por outros ângulos, entrando muito mais em aspectos psíquicos.
"Manifeste a bondade onde ela não existe;
Fomente a bondade onde ela existe;
Não manifeste o mal onde ele não existe;
Extinga o mal onde ele existe."
Tratado Budista sobre a Perfeição da Grande Sabedoria, referente ao esforço correto.
A frase acima é clara, mas nem sempre nossa visão é clara o suficiente para saber como aplicá-la, especialmente quando nós, como vegetarianos, estamos conscientes sobre as condições pelas quais os animais são criados, explorados e mortos todos os dias.
Frente a essa consciência, é muito difícil, para não dizer impossível, não nos posicionarmos de forma a agirmos positivamente em prol da proteção aos animais. E para que isso não seja feito de forma inadequada, agredindo os seres humanos e até mesmo prejudicando os animais, é importante repararmos um pouco mais na estrutura psíquica humana. Esse conhecimento é a primeira etapa para não trocarmos os pés pelas mãos.
O QUE TE TOCA NO VEGETARIANISMO?
De forma geral, há um motivo principal que nos toca, que nos faz ter a vontade de transformar nossa relação com os animais e com o nosso alimento. Quando nossa percepção ainda é limitada pela falta de experiência e maturidade na troca com outros seres humanos, temos a ideia de que basta mostrar nosso motivo aos outros, que eles também se tornarão vegetarianos. Ledo engano!
Nossa forma de ver o mundo, de nos sentirmos tocados com os fatos ocorridos é muito diferente! Não é à toa que temos, com o mesmo preço, carros, roupas e outros bens de consumo diferentes. Existem times de futebol diferentes. As pessoas se mobilizam por interesses e fatores diferentes. Muitos comerciais não vendem objetos de necessidades, mas sim desejos.
E basta olharmos ao nosso redor. Mesmo os mais dedicados ativistas vegetarianos pelos direitos dos animais, não conseguem "transformar" todos seus parentes e amigos em vegetarianos. E a impressão de terem se afastado de alguns antigos amigos que se tornaram incompatíveis (por apenas gostarem de assuntos ou programas que envolvam carne), apenas traz a ilusão de que basta falar para mudar.
Praticamente todos os vegetarianos já sentiram o incômodo de explicar todos os argumentos referentes ao vegetarianismo para uma pessoa, mostrar-lhe os vídeos sobre abate e maus tratos e, mesmo assim, essa pessoa continuar a comer carne, mesmo concordando racionalmente que deveria parar. Ou até continuar comendo carne sem se sentir tocada por nenhum argumento, dizendo que os animais são feitos para isso mesmo.
Isso não mostra incompetência em agir ou passar a mensagem vegetariana, mas sim a diversidade de comportamentos, percepções e interpretações que o ser humano tem sobre os fatos.
É mais fácil e confortável "pregar para convertidos", ou seja, falar para os que concordam com o que dizemos. É mais fácil conviver com pessoas que pensam como nós pensamos, que compartilham o que gostamos de compartilhar. É com essa sensação de prazer que muitos criam grupos e mantêm ciclos de amizades. A tendência é que os iguais se atraiam quando a busca é por compartilhamento de prazer.
Olhar para o que é diferente da nossa vontade, e traçar estratégias amorosas para a transformação da consciência humana nem sempre é fácil.
Quando assumimos uma postura inflexível, atraímos as pessoas tão inflexíveis quanto nós. Quando assumimos posições amorosas, permanecem perto as pessoas amorosas. Os seres humanos não precisam pensar de forma idêntica para estarem juntos, trabalhando com o mesmo foco de ação, mas precisam nutrir respeito pelas posições que adotam. Uma pessoa inflexível tem dificuldades de se relacionar com as demais e conseguir avanços.
O Ego é um elemento traiçoeiro da personalidade. Quando nos achamos superiores ao bem e ao mal da vida, normalmente a vida se torna muito dura, para que nós tenhamos que, no fim, admitir que não somos superiores a nada.
Se queremos atingir todas as pessoas com a mensagem vegetariana, temos que agir de forma a que possamos tocá-las. E essas formas são múltiplas!
O MOVIMENTO VEGETARIANO SE COMPÕE DE TODOS OS GRUPOS E ABORDAGENS.
Frente ao que já conversamos anteriormente, é intuitivo pensar que há muitos fatores que levam alguém a se tornar vegetariano, e que alguns são (por tempo que não temos condição de prever) imunes aos argumentos vegetarianos. Por isso, para que alguém se torne vegetariano, a via que o toca tem que ser ativada.
Vamos a exemplos práticos, diante do que acabamos de conversar:
1) Quem não teve contato prévio com a informação, ou seja, desconhece os fatos, deve ser abordado por meio do recebimento de informações.
Essas pessoas conseguirão essas informações por meio de uma infinidade de veículos possíveis, que vão desde a internet, TV, panfletagem, conversas com amigos...
Sendo assim, qualquer grupo que promove o vegetarianismo vai poder atingir a massa, quando a ação é ampla.
Se a mensagem será positiva ou negativa, isso dependerá de vários fatores, mas principalmente da forma pela qual a pessoa que recebe se identifica com a mensagem.
2) Quem tem a intelectualidade como forma de sustentação de vida, ou seja, quem é mais racional do que emocional, é tocado por meio de argumentos.
Ser mais emocional ou racional nem sempre é uma escolha.
Muitos de nós já tivemos contato com pessoas que têm a ideia de que a cadeia alimentar tornou o ser humano mais hábil como predador, devido à tecnologia que criamos, e que os animais merecem ser comidos. Para essa pessoa, a lógica que criou é convincente a ela, e muitas vezes não adianta tentar levar recursos emocionais, mesmo que visuais (como vídeos) a ela, porque sua ideia não mudará.
Os livros de grandes filósofos e dados científicos são fortes ferramentas de argumentação com as pessoas movidas pelo intelecto, e tudo o que é publicado a esse respeito, é válido para uma conversa com a pessoa movida pela racionalidade.
A religiosidade de alguém, pode ser um forte argumento lógico para ela. Não é à toa que muitas pessoas são vegetarianas por motivos religiosos.
3) Quem tem o coração sensível e aberto, é tocado por meio da emoção.
Para uma pessoa mais sensível, nem sempre a racionalidade é o elemento que a move. Contar sobre a criação e exploração animal só fará efeito a ela se for capaz de criar uma imagem mental que se conecte com suas emoções.
Para algumas dessas pessoas, a imagem de um grupo mostrando sangue e sofrimento, pode até trazer uma ideia negativa sobre o vegetarianismo, pois ela associa isso com negatividade e sofrimento. Essa pessoa se sensibiliza com algo vegetariano mais delicado e afetivo, e pode se transformar com essa mensagem.
Para outras, a imagem de dor e sofrimento pode ser o elemento de impacto que ela precisa para se tornar vegetariana. Não há regras, mas sim conexões.
4) Quem quer mudar, mas encontra dificuldades no meio em que vive, deve ter seu meio facilitado, por meio de opções (como ter comida vegetariana disponível onde frequenta)
É fato: o vegetariano estrito ainda encontra mais dificuldade para se alimentar na rua. Não por falta de opções vegetais, mas pela adição de elementos animais nos pratos, como o bacon no feijão, e pelo fato de grande parte dos demais produtos de consumo levar carnes, ovos e laticínios.
Não é qualquer pessoa que está disposta a andar atrás de um restaurante vegetariano ou ter que ficar perguntando toda vez se há ingredientes animais nos pratos dos restaurantes que frequenta, ou mesmo ter que levar seus lanches quando vai viajar. Há pessoas que perdem o incentivo por conta disso, e acabam voltando a comer carne (e demais derivados). Alguns julgam que enfrentar essa adversidade é apenas uma questão de convicção, mas o fato é que, sendo ou não, isso não importa. O que importa é que se o objetivo é pelo ato de poupar animais da morte e sofrimento, oferecer condições para que as pessoas possam consumir refeições vegetarianas impacta na diminuição de animais mortos ou explorados.
É nesse momento que a existência de pelo menos um prato vegetariano estrito (pois permite que veganos e ovolactovegetarianos o consumam) em restaurantes comuns e mesmo a presença de chefs preocupados em incluir a população vegetariana nos seus restaurantes é de forte ajuda. Tudo o que envolva culinária, nesse aspecto, é de grande valor para isso.
5) Para quem não quer mudar e nem pensar a respeito dos animais, não adianta insistir em argumentos emocionais ou lógicos, mas quando se pensa nos animais, a ação pode ser por meios políticos e econômicos que visem, no mínimo, minimizar o consumo de animais e seus derivados.
Exigir algo que uma pessoa não pode te dar, apenas leva à frustração.
Para pessoas que não querem modificar seus hábitos e relações com outros seres, o que poupa animais do sofrimento e morte são mudanças políticas e econômicas, ou seja, ações que dificultem o consumo da carne. Percebo que esse tipo de ação pode incomodar muito alguns vegetarianos (e mesmo onívoros), mas esse incômodo é um elemento do ego e da negação do fato de que algumas pessoas não são tocadas pelo vegetarianismo. Devido ao incômodo que muitas pessoas manifestam a esse respeito, escreverei um tópico sobre isso mais à frente.
Com esse quadro, não fecho as possibilidades, mas apenas ilustro que uma temática única de ação vegetariana é sempre limitada.
A questão é que nem sempre sabemos a via pela qual a pessoa se sensibiliza. Não adianta tentar sensibilizar alguém por vias que ela não tem acesso. Não adianta, por exemplo, querer que alguém te ame com argumentos lógicos. Vale também constatar o que ocorre com o cigarro. Não há dúvidas sobre sua nocividade, e muitas pessoas ainda fumam. O cigarro é um grande problema de saúde pública, e mesmo assim sua venda é legalizada.
Assim, quando compreendemos que os seres humanos se mobilizam por motivos diferentes (e às vezes não se mobilizam), compreendemos que múltiplas formas de abordagem são válidas.
COMO VOU SABER AONDE A MENSAGEM TOCARÁ A PESSOA?
Não há como saber quando a mensagem é feita em massa. Mesmo individualmente, há dificuldade de saber aonde a mensagem chega e faz eco no mundo psíquico do indivíduo. Às vezes, mesmo conhecendo todos os valores e histórico de vida de uma pessoa, não temos a certeza de como serão suas reações.
Quando passamos uma mensagem, as pessoas seguem quando se identificam com ela e encontram meios de realizá-la. Assim, todas as vias de acesso ao vegetarianismo são úteis, por atingirem toda a diversidade de possibilidades.
Quando alguém é tocado pelo vegetarianismo, com o tempo vai conhecer todos os seus aspectos, e entrar em contato com seus diversos grupos, que trabalham de forma diferente na tônica de passar suas mensagens. E essa pessoa vai acabar se integrando – quando quiser se integrar a grupos – ao que mais tem relação com a sua forma de se manifestar. Há grupos que são de estudo, outros de ativismo de rua, outros com fortes habilidades políticas ou educativas, por exemplo. Muitos mesclam vários dos temas.
Quando nos propomos a participar de um grupo, é importante verificarmos qual é a forma de trabalhar que faz mais sentido para nossa emoção e racionalidade.
PODE MACHUCAR O EGO, MAS SALVA OS ANIMAIS.
Uma pessoa pode ser tornar vegetariana (estrita ou não) da noite para o dia. Mas ela pode demorar décadas para fazer essa transformação, quando tem a intenção de fazer. E veja bem, ela pode não se tornar vegetariana.
Enquanto isso, há ações para serem adotadas na proteção animal, e isso se refere muito aos aspectos políticos e econômicos.
No ano passado, o consumo de carne na Argentina diminuiu 17%, pelo fato do seu preço subir. Reduzir 17% do consumo de animais é algo significativo! São milhares de animais poupados. Qualquer ativista pelo direito dos animais fica feliz quando salva um único animal! Quem diria essa quantidade, em um ano!
E se alguém questionar que isso não é válido, pois a mudança não foi pela consciência, está esbarrando nas próprias defesas do ego, e não nos animais.
Vamos a outro dado mais impactante ainda.
A população brasileira (mais de 200 milhões de habitantes, segundo o IBGE) come 220g de carne por dia. Vamos imaginar que é apenas carne bovina, e cada boi gera 250 kg (250.000 g) de carne. Se estivéssemos falando de frangos, o número de animais seria imensamente maior.
Isso quer dizer que 176.000 bois (e vacas) são consumidos diariamente. Se o consumo de carne for realizado conforme preconiza o Ministério da Saúde, ou seja, até 100 g por dia, a quantidade de bois sacrificados por dia será de 80.000 bois. Isso significa que poupamos 55% dos animais!! São 96.000 animais mortos a menos, por dia!! Isso significa que 54,5% dos animais não foram mortos por dia!
Para conseguirmos essa mesma fração de animais poupados, teríamos de transformar quase 91 milhões de pessoas em vegetarianas da noite para o dia, o que equivale a quase 45,5% da população brasileira.
Ou seja, para os animais, em termos de abate, se 45,5% da população se tornar vegetariana terá o mesmo efeito que reduzir o consumo de carne quase pela metade de toda a população brasileira. Isso é significativo!
E se somarmos o fato de que podemos reduzir o consumo de carne para quem não quer se tornar vegetariano e conseguir facilidades em difundir informações para quem quer ser vegetariano, o efeito será maior ainda! Os animais precisam de todas as abordagens.
O ego imaturo apenas aceita sua própria visão narcisista.
E quem come 100 gramas de carne costuma ter muito mais facilidade para deixar de comê-la, quando quer parar, do que quem come uma quantidade maior.
Não vamos criar um mundo utópico, onde achamos que se falarmos para alguém "seja vegetariano", ou "seja vegano" isso vai ocorrer.
Não é à toa que diversas Sociedades Veganas ao redor do mundo (Reino Unido, Estados Unidos, Indonésia, Espanha...) apoiam a campanha Segunda Sem Carne. É uma campanha que entende o funcionamento psíquico humano, já que atinge os que nunca tiveram contato com o vegetarianismo. E uma vez apresentado a ela, várias transformações podem ocorrer. E tudo isso depende das suas conexões, do que toca a pessoa.
A Segunda Sem Carne é um convite ao conhecimento do universo vegetariano.
A VIOLÊNCIA E DESRESPEITO NÃO DEVERIAM FAZER PARTE DO VEGETARIANISMO.
Se a morte e a exploração animal são as representações da agressividade, violência e insensibilidade, nutrir uma postura de agressividade, violência e insensibilidade pelos demais seres humanos significa tentar construir um novo mundo com valores idênticos aos que tentamos nos afastar hoje.
No universo psíquico primitivo, infantil ou infantilizado, o ser humano ainda se apega à necessidade de auto aprovação na tentativa de se sentir seguro. Nessa condição, tudo é o "meu": "meu grupo", "minhas ideias" e tudo o que é "meu" é melhor do que o do outro. Quando a maturidade ocorre, não precisamos competir e tentar repetidamente provar aos outros o nosso valor, e muito menos anular os outros para que tenhamos a sensação de que temos valor. O outro não precisa deixar de existir, para que você exista. Na maturidade emocional, existe respeito.
E com maturidade, educação e respeito, nossos atos podem promover mudanças profundas.
Autor: Dr. Eric Slywitch
- Última atualização em .