A “polícia vegana” prejudica os animais
Ao longo destes quatro anos, muito foi discutido em relação a quais fatores precisariam ser trabalhados para alcançar uma maior retenção. A pergunta que precedia essa discussão, entretanto, era: Por que as pessoas deixam de ser veganas?
A resposta, pelo que os estudos indicam, não está em razões médico-nutricionais e muito menos em razões filosóficas (algo como “Eu deixei de acreditar que o que fazem com os animais é cruel e errado”). A razão, quase sempre, é de ordem social (algo como “Simplesmente estava muito difícil permanecer vegano”).
Mas o que, exatamente, as pessoas querem dizer quando falam que “é muito difícil” ser vegano? Qual ou quais os fatores sociais preponderantes que produzem essa dificuldade?
Esta resposta é um pouco mais complexa e multifatorial. Existe, por exemplo, a barreira do senso de pertencimento, quando a pessoa está inserida em círculos sociais eminentemente carnistas. Existe a barreira mercadológica, quando a pessoa não encontra facilmente, na sua rotina, opções veganas com o tripé sagrado da acessibilidade-atratividade (preço, sabor e conveniência). As pessoas que decidem adotar o veganismo num impulso, sem um período de transição, também parecem mais propensas a desistir. E há diversos outros fatores sociais apontados pelas evidências – frequentemente correlacionados entre si.
Mas existe um fator social inegável que tem feito muitas pessoas desistirem do veganismo: a pressão exercida pela própria comunidade vegana sobre as suas escolhas de comida, bebida, cosméticos, produtos de limpeza, entretenimento e/ou vestuário. Se você ainda não havia sido apresentado, conheça agora a Polícia Vegana.
Basicamente, se você, por “fraqueza” ou falta de convicção ou qualquer outra razão, consumir voluntariamente um determinado produto ou serviço que não é “permitido”, você está fora do jogo. Você não é vegano. Ponto. Porque as palavras e definições devem ser usadas corretamente, explicarão.
Por exemplo, se você se considera vegano e tem deixado de consumir todas as carnes, laticínios e ovos, mas come uma granola com mel no café da manhã, um agente da Polícia Vegana poderá autuá-lo. Com sorte, você receberá apenas uma advertência disciplinar, mas deverá pensar três vezes antes do seu próximo café da manhã, sob risco de ser suspenso.
Em um outro dia, numa situação de poucas opções, se você pedir um sanduíche improvisado de tomate com azeite sem ter conseguido confirmar se o pão é realmente vegano, a repreensão poderá ser mais severa. O mesmo ocorrerá se você beber uma cerveja de marca pertencente a uma empresa que patrocine rodeios, ou usar uma marca de creme dental pertencente a uma holding internacional que realiza testes em animais na China por exigência do governo.
Não é preciso ser expert em sociologia e nem em ativismo estratégico para perceber que esses mecanismos de restrição, vigilância e cerceamento resultam em menor interesse de participação. Quem quer fazer parte de uma comunidade que “caga regra” o tempo inteiro e intimida quem pisar fora da linha?
O mais delicado é que essa intimidação, por vezes, se dá de maneira muito sutil – e, frequentemente, sem a intenção de intimidar. “Estou apenas fornecendo informações”, “promovendo educação vegana” e “difundindo conhecimento para ajudar as pessoas a tomar decisões informadas” são exemplos de frases que traduzem as boas intenções de quem estabelece – ou passa adiante – essas regras sem perceber o mal que está fazendo.
A Polícia Vegana (intencional ou não) tem um manual de trabalho: a Cartilha Vegana. Essa cartilha determina critérios de eliminação (por exemplo: pertencer a empresa que patrocine rodeio; pertencer a empresa que faça testes em animais; etc.) e lista quais produtos e serviços podem ser considerados veganos e quais não podem. (Uma variação ligeiramente mais autoritária diria “quais produtos e serviços podem ser consumidos por veganos e quais não podem”).
A Cartilha pode ser atualizada a qualquer momento, levando em consideração não somente eventuais alterações de formulação de produtos (digamos, um produto que passou a ter a vitamina D de origem animal), mas também fusões e aquisições empresariais e novos contratos de patrocínio, publicidade ou parceria. Mesmo que um produto vegano permaneça exatamente o mesmo, o simples fato do controle acionário da marca ter sido transferido, por exemplo, para uma grande empresa farmacêutica (que é um tipo de empresa que, invariavelmente, faz testes em animais) desqualificaria esse produto para ser consumido por veganos.
A pior parte é que este fator social não apenas faz com que muitas pessoas desistam (“voltem atrás”) do veganismo, como também previne a adesão de outros que estão flertando com esse universo. Ou seja, além do número de ex-veganos cinco vezes maior do que o número de atuais veganos, existe uma grande quantidade não contabilizada de pessoas que sequer chegaram a se considerar veganas devido a essas estruturas de regramento e fiscalização.
Dirão que as palavras precisam ser levadas a sério, por isso é importante saber o que (e quem) é vegano ou não. Pois eu digo que os animais têm que ser levados a sério, muito mais do que as palavras. Se aqueles milhões de ex-veganos permanecessem veganos hoje, mesmo que fossem “veganos que consomem mel” ou “veganos que compram produtos de limpeza não verificadamente livres de testes em animais”, os animais estariam em uma situação bem melhor do que hoje.
Ao determinar ou promover elementos dessa rígida cartilha, em vez de reconhecer maior subjetividade e individualidade dentro do veganismo, concluo que estamos contribuindo para o sofrimento de um maior número de animais.
- Última atualização em .