Polícia Vegana: Você Faz Parte Dela?
Por Alex Fernandes
O veganismo, enquanto fenômeno social, não está imune aos vícios e ranços do comportamento humano. Como qualquer outro movimento, ele também sofre com o sectarismo, com o desejo de vigilância sobre os outros e com a imposição de dogmas. E é justamente sobre isso que falaremos aqui: o surgimento de uma espécie de "Polícia Vegana", um fenômeno que mais afasta do que aproxima pessoas da causa.
O Velho Hábito de Vigiar e Punir
Observar, julgar e punir os comportamentos alheios é uma prática tão antiga quanto a própria humanidade. Religiosos fazem isso há milênios, garantindo que suas doutrinas sejam seguidas à risca. Sociedades autoritárias se valem de sistemas de vigilância para manter o povo sob controle. E no veganismo, um movimento que teoricamente deveria prezar pela liberdade de escolha e pelo despertar da consciência, essa mesma lógica de policiamento e punição encontrou terreno fértil.
Embora o veganismo não possua líderes ou hierarquias formais, dentro da comunidade surgiram verdadeiros inquisidores que se sentem no dever de julgar e condenar aqueles que, segundo suas próprias regras, não seguem a "cartilha vegana". A comparação com religião não é à toa. O veganismo, em essência, nada tem a ver com dogmas religiosos, mas certos veganos se comportam como membros fanatizados de uma seita que precisa controlar o comportamento dos demais.
O problema? Essa "cartilha" simplesmente não existe. O veganismo, assim como qualquer movimento, é um campo de discussão, de evolução e de aprendizado. Mas para a Polícia Vegana, há apenas um caminho certo – e ele deve ser seguido à risca.
A Ditadura do Purismo e o Cancelamento Vegano
O policiamento dentro da comunidade vegana tem um efeito direto e perverso: ele afasta as pessoas. Seja aquele vegano iniciante que sente que nunca será "bom o suficiente" para a causa, seja o simpatizante que, ao observar de fora, conclui que o veganismo é rígido demais para ser colocado em prática.
Muitos daqueles que fazem parte da Polícia Vegana acreditam estar protegendo o movimento e mantendo a coerência ideológica. Mas, na prática, estão apenas jogando contra. Ao invés de trazer mais adeptos, seu comportamento afasta quem poderia estar interessado em mudar seus hábitos. Nada desencoraja mais do que a sensação de que qualquer desvio será punido com hostilidade e exposição pública.
Um dos métodos mais comuns da Polícia Vegana é o cancelamento. Redes sociais são inundadas com denúncias contra celebridades que, um dia, declararam ser veganas e, em outro, foram vistas consumindo algo de origem animal. Empresas que tentam investir no mercado vegano, mas falham em atender a algum critério, são atacadas impiedosamente. Em muitos casos, essas campanhas de linchamento digital não passam de estratégias para gerar engajamento nas redes. Afinal, a ira da comunidade rende curtidas, compartilhamentos e, consequentemente, relevância para certos influenciadores que lucram com a polêmica.
O resultado? Uma guerra interna que enfraquece o movimento e alimenta um ciclo tóxico de patrulhamento e punição. E enquanto veganos se digladiam entre si, a exploração animal segue acontecendo sem ser minimamente impactada.
O Veganismo Fora da Bolha: Realidades Diferentes Pelo Mundo
Quem já teve a oportunidade de viajar e conhecer diferentes comunidades veganas pelo mundo sabe que o conceito de veganismo não é tão rígido em todos os lugares. Em países asiáticos, por exemplo, o foco ainda está muito mais na alimentação do que no uso de produtos de origem animal. É comum encontrar pessoas que se consideram veganas, mas que ainda utilizam acessórios de couro ou não estão completamente envolvidas na luta contra testes em animais.
É correto desqualificar esses indivíduos como "não veganos"? Ou é mais produtivo enxergar o contexto em que estão inseridos e perceber que cada avanço, por menor que seja, é importante para o todo? O pensamento dogmático da Polícia Vegana não aceita meio-termo. Para eles, ou você se encaixa no padrão ideal ou está do outro lado da trincheira.
O Preço do Radicalismo: O Golpe Contra o Veganismo Acadêmico
A patrulha incansável da Polícia Vegana teve consequências além das redes sociais. O meio acadêmico, que por muito tempo utilizou o termo "dieta vegana" para referir-se à alimentação baseada em vegetais, precisou adotar um novo termo: plant-based.
A razão para isso? A pressão de ativistas radicais que não aceitavam que pesquisadores, médicos e nutricionistas utilizassem o termo "vegano" para descrever um padrão alimentar sem a inclusão de uma filosofia de vida mais ampla. O resultado desse radicalismo foi um golpe direto na força política e moral do movimento. Ao substituir "dieta vegana" por "dieta plant-based", o veganismo perdeu sua presença na ciência e se tornou algo menos relevante no debate acadêmico.
Mais do que isso: a nova terminologia permitiu flexibilizações perigosas. Um produto plant-based não precisa, necessariamente, ser 100% livre de exploração animal. Ele pode, por exemplo, ser testado em animais e ainda assim manter o selo. Com isso, empresas que antes teriam que atender a padrões éticos mais rigorosos agora podem simplesmente adaptar sua estratégia de marketing e continuar explorando animais sem serem questionadas.
Passa pra ca sua carteirinha!
No universo vegano, é comum a brincadeira da "Polícia Vegana", onde, de forma humorística, amigos "revogam" a "carteirinha de vegano" de alguém que cometeu um deslize, como consumir um produto de origem animal. Essa sátira reflete discussões internas sobre purismo e vigilância no movimento, destacando a necessidade de equilíbrio entre coerência e acolhimento.
O Veganismo Como Processo, Não Como Perfeição
Diante desse cenário, fica a pergunta: qual é o papel dos veganos dentro do próprio movimento? Devemos agir como inquisidores e manter um tribunal constante sobre quem é "vegano de verdade" e quem não é? Ou devemos reconhecer que cada pessoa tem seu próprio tempo e que qualquer avanço em direção ao veganismo já é uma vitória?
É claro que há oportunistas. Pessoas que se aproveitam do veganismo por modismo ou conveniência. Isso existe em qualquer movimento. Mas essa realidade não justifica a necessidade de patrulhamento incessante. A obsessão pelo controle total apenas gera medo, exclusão e desgaste desnecessário.
O maior inimigo do veganismo não é a falta de perfeição dos seus adeptos. É a exploração animal em si. E se queremos realmente impactar esse sistema, precisamos ser mais estratégicos e menos dogmáticos. Em vez de afastar, devemos acolher. Em vez de punir, devemos educar.
O veganismo não precisa de uma polícia. Precisa de pessoas dispostas a construir, e não apenas a destruir.
Sobre o Autor
Alex Fernandes é Webmaster da IVU desde 2013 e Conselheiro da IVU desde o mesmo ano. Fundador do Guia Vegano, um dos primeiros sites veganos do Brasil, Alex tem sido uma força motriz na promoção do veganismo em nível global. Ele também atua como Conselheiro da Sociedade Vegetariana Brasileira e participa como palestrante em VegFests internacionais.
Fontes pesquisadas:
Plant-based origins. Disponível em: https://rootthefuture.com/definition-of-plant-based/
União Vegana Brasileira. “‘Polícia Vegana’ – Disputa de Narrativas e Coerência da Prática Vegana.” União Vegana Brasileira, 14 de agosto de 2024. Disponível em: https://uniaovegana.org/policia-vegana-disputa-de-narrativas-e-coerencia-da-pratica-vegana/
Veganizadores. “Veganismo: Produtos x Empresas | Polícia Vegana.” Veganizadores, 2019. Disponível em: https://veganizadores.com.br/veganismo-produtos-empresas-reflexao/
Guia Vegano. “A ‘Polícia Vegana’ Prejudica os Animais.” Guia Vegano, 2 de julho de 2018. Disponível em:
Vegan.com. “Vegan Police.” Vegan.com, 2025. Disponível em: https://vegan.com/info/vegan-police/
Glue and Glitter. “Can We Talk About the Vegan Police?” Glue and Glitter, 2025. Disponível em: https://www.glueandglitter.com/can-we-talk-about-the-vegan-police/
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