Da farra-de-homens mal-acostumados, contra bois indefesos
Sônia T. Felipe
Do boi e do homem voltamos sempre a falar, no Estado de Santa Catarina, a cada ano, com a aproximação das festas da ressurreição. Sempre a pretexto de se preservar a cultura e a tradição açorianas, trazidas para a Ilha de Santa Catarina, aficcionados cidadãos, rasgando a Constituição e ridicularizando a ética e a justiça, reúne-se, levando suas próprias crianças, tão vulneráveis à violência e à morte como o boi, para correr atrás de bois, em estado de pânico. Parece muito inocente, essa farra que mata jovens e meninos, todos os anos, erroneamente denominada de a farra do boi, pois, a bem da verdade, ela é simplesmente a farra de alguns poucos homens, com gosto de sangue a lhes anuviar o sabor
O boi corre, exausto, faz investidas
contra os que o maltratam, estaca, senta-se, bufa, as
narinas dilatadas, o pulmão em sufoco, o coração
em disparada, um toco ensanguëntado no lugar da
cauda. Coração, pulmões, músculos,
e a desproporção entre a estrutura muscular
de suas pernas e o volume do corpo, obrigado pela multidão
a mover-se com velocidade, são o que de mais objetivo
se apresenta aos sapiens, como indicadores da constituição
vulnerável do bovino.
Por natureza, esse animal não é de corrida, muito menos, de luta. Ele não tem garras nem presas. Não ataca a não ser em legítima defesa, não morde, nem fere, se deixado em paz. O volume de seu corpo, porém, excita os machos que fazem uma farra. Confrontar-se com tal volume parece propiciar-lhes o que lhes falta: virilidade. E esta não se mostra boa-coisa. É bruta. Machuca e mata.
Investir contra os que o atacam, nem sempre resulta eficaz, para o boi. Para poder investir com sucesso, faltam-lhe os músculos típicos do arranque veloz e da corrida-de-fundo. Falta-lhe, ainda, treinador, massagista, fisioterapeuta, benesses dos reais lutadores humanos, que sobem às arenas do boxe, e das demais lutas nas quais homens confrontam-se fisicamente.
Mas, não se trata apenas da constituição anatômica e fisiológica do animal, também de sua constituição psíquica. O boi investe contra esse outro animal que o provoca, não porque ache isso uma delícia de brincadeira. Ele o faz, tentando demover o agressor de aproximar-se demasiadamente do seu corpo. Afinal, um corpo enorme, pesando mais de meia tonelada, sustentado e transportado por quatro pernas pequenas e finas, com músculos impróprios para a luta, é tudo o que o animal tem, para mostrar ao homem que se excita em sua presença, que essa tradição não apenas é de pouco bom-gosto, mas cruel em sua origem, pois parte do suposto de que os animais são objetos da diversão de homens entediados. Bois são lentos ao caminhar. Grande é a queima de oxigênio para mover seu corpo, por isso ele se move com lentidão. Falta-lhe oxigênio.
O mesmo nos acontece. Sofremos quando temos de nos deslocar em velocidade superior à da reposição de oxigênio. Por essa razão, comemoramos tanto o velocista olímpico, o maratonista. Pois o atleta força sua natureza a superar-se. A diferença é que ele escolhe o desafio e o custo de romper seus próprios limites biológicos. O boi não tem escolha. É simplesmente forçado a compor uma cena que jamais poderá lhe propiciar qualquer benefício. Enquanto os atletas treinam anos a fio sua fisiologia, para superar a condição natural e competir com seus iguais, na arte treinada, a maioria dos seres humanos não se dedica a nada disso, pois não vê benefício algum em gastar tanta energia, para compor a cena final da competição, e servir de espetáculo para os sedentários.
Somos como os bois. Sem treino para o jogo. Qualquer esforço sobre músculos do nosso corpo, não utilizados nas atividades sedentárias diárias, resulta em falta de ar, pulsação acelerada, perda de líquido, dores horríveis durante o esforço desmesurado e no dia seguinte. Em nosso psiquismo a reação que se esboça é a de uma profunda angústia, medo de parada cardíaca, medo de sufocar, medo da dor. Sentamos na calçada, ofegantes. Mas, ninguém nos dá cutucadas nem chutes para que prossigamos.
Tudo o que mais abominariam, caso alguém
se atrevesse a fazer contra seus corpos, na farra-do-boi,
esses homens fazem contra o animal. Toda a crueldade é praticada
em nome da tradição, como se a defesa de
um costume fosse um valor absoluto, mesmo quando o costume
aparece aos olhos de todos os demais como brutal, violento,
inútil, injusto, expressão de um atraso
moral inqualificável, pois não faltam argumentos
contrários aos mesmos, na mídia impressa,
escrita e televisionada.
Os açorianos, caso algum dia tenham brincado com bois soltos nas ruas, certamente o fizeram num tempo em que não havia mais nada para distrair a multidão aborrecida, a não ser os rituais religiosos. A farra é um ato não-religioso, fere os princípios mais básicos da moralidade humana, o sentido de justiça e o próprio conceito de humanidade que a tanto custo se tem procurado construir na natureza dos animais dotados de razão e sensibilidade.
Os animais sensíveis não sentem apenas a dor, têm consciência e angústia do limite de seu corpo. A crueldade contra eles expressa simplesmente o nível de crueldade da qual o homem é capaz, contra os seres de sua própria espécie.
Um país que vilipendia sua própria Constituição, que deixa os policiais observando as práticas de crueldade contra os bois sem levar preso quem farreia, julga-se acima da moralidade humana, acima dos padrões internacionais de civilidade, acima do dever de compaixão e de justiça.
Nesse país, por conta de sua tradição
hipócrita e indiferente ao sofrimento de quem
sofre a crueldade, exatamente, perecem meninos, vítimas
dessa farra contra vida, que, hoje, ao redor do planeta,
só no Brasil se pratica com desdém, pois
em outros lugares a morte vem pela mão do inimigo,
não do que está próximo. No Brasil,
há uma farra contra a vida dos seres vulneráveis à brutalidade
alheia, que se estabelece a cada dia. Ora o boi é usado
como arma para matar a criança, ora o automóvel,
ou o hábito de consumir drogas fornecidas por
um mercado de violência e morte.
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Em uma região apenas, de Santa Catarina, temos essa farra repulsiva, a repetir-se cada ano. O povo do resto do Estado envergonha-se de encabeçar, na quaresma, a lista dos mais violadores dos direitos animais, ao redor do planeta. Mas, a matriz cognitiva e moral da violência é de uma mesma natureza: sua matança em massa, nos centros de confinamento dos animais para o abate, e pela tortura contra os bois escolhidos para a farra dos mal-acostumados a uma tradição que apenas nos achincalha, nosso Estado está batendo todos os recordes internacionais de maldade contra os animais. Há alguém que sente orgulho disso?
Jamais presenciamos qualquer animal praticando atos que excedam sua capacidade física natural. E, menos ainda, o fazem contra nós. Sempre que presenciamos uma cena dessas, esses animais estão em nosso poder e são forçados, por medo de chibatadas, medo da morte ou angústia artificialmente produzida, a fazerem o que, por livre e espontânea vontade jamais fariam.
A farra dos homens contra o boi é uma farra andro-chauvinista, exclusiva do homem. Emoções fortes é o que esse procura, ao colocar um boi na jogada. As mesmas emoções, com nenhum prejuízo ético, esse homem pode conseguir correndo colina acima, para chegar por primeiro. Imagine se um boi o perseguisse colina acima! Farra, na qual uma das partes nada ganha e tudo perde, e outra se regozija é gozo, não é brincadeira. A perversão moral leva o homem a julgar que deve preservar a tradição que lhe assegura o privilégio de gozar às custas da dor e do sofrimento alheios. O estupro é uma prática sexual tradicional. A violência contra as mulheres, também. Não por coincidência, ambas são práticas tradicionais de homens, contra seres vulneráveis.
Se seres superiores a nós em inteligência nos capturassem e nos levassem em gaiolas para seus territórios, nos usassem em brincadeiras aterrorizantes, incompreensíveis para nosso intelecto, certamente não expressaríamos em sua língua o sofrimento ao qual nos sujeitariam, mas, estarrecidos, constataríamos a existência de seres capazes da maldade, resultante do uso de sua superioridade intelectual e racional para troçar cruelmente de nós. O modo como toleramos a crueldade e extermínio de animais não-sapiens revela, lamentavelmente, o quanto toleramos a crueldade contra adolescentes nas ruas, negros, homossexuais, mulheres, idosos, pobres e sem-teto. Para mudarmos nossa relação com esses últimos, urge que nos demos conta do que fazemos a todos os seres que julgamos inferiores a nós.
Ilha de Santa Catarina, 21 de março de 2006
(Sônia T. Felipe - Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, Co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência; voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1997-2001); co-autora de, A violência das mortes por decreto; O corpo violentado; Justiça como Eqüidade, Por uma questão de princípios. Coordena o Laboratório de Ética Prática, do Departamento de Filosofia da UFSC, professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC, autora de dezenas de artigos em coletâneas nacionais e internacionais sobre ética animal, Membro Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa)- Última atualização em .