Da liberdade aos animais ou ‘hamster-correndo-em-uma-rodinha’
Se as pessoas têm plena dificuldade de compreender e vivenciar o conceito de liberdade, em suas própria vida, como ver a liberdade em seres que considera inferiores, os animais? Cada uma dessas pessoas aí fora, marchando pelo mundo na certeza de que realizou escolhas, dentro do fiapo de espaço que o sistema lhes permite, tem noção exata de que ser livre não significa quicar em paredes de condições e poréns? Gente que acha que escolheu alguma coisa na vida, apesar de a carreira ter sido teleguiada pelos pais, a aparência pessoal pela moda vigente, a sexualidade pela pressão social, os ‘favoritos’ por indicação, a alimentação pela tradição, o voto político pela falta de opções melhores, a religião pela família ou pela proximidade geográfica, as opiniões pelas vozes mais altas que ouve, entre todos que falam.
Acostumado com o brete, o mundaréu de povo aí fora acha normal o animal escravo, o animal produto, o animal consolo, o animal serventia. ‘Ah mas é bem tratado’, resposta automática que mais ouço, um mantra cantado ad nauseam com sininhos de acompanhamento – justamente esse raciocínio que alguém teve, e o autômato ao lado achou razoável e incorporou a seu receituário de verdades. Sendo bem-tratado, OK, com a óbvia fiscalização onipresente-onisciente que alguém deve estar fazendo, não eu. Livre é tão distante porque esse sabor não lhe foi permitido, ou ainda só está sendo acenado para depois da morte, como uma bengala para tolerar a vida com a resignação que se faz necessária.
Aplicar esse bem maior que é a liberdade por sobre o lombo de um cavalo, cachorro, passarinho, porco, hamster ou galinha é visto como mais uma das excentricidades dos abolicionistas porque, no fundo do ralo, a vida de cidadão engessado incomoda aquele que resolve questionar os padrões. As promessas mágicas que a vida por si só parecia oferecer logo adiante, mas a passagem dos anos se revelou apenas um hamster-correndo-em-uma-rodinha, e esse afrouxar de cinto da liberdade vale tanto que não será para um porco que será atribuído, nem pro coelho que arde no laboratório, ou para o passarinho engaiolado que canta porque foi afastado da fêmea.
No corredor estreito que se permite correr, o populacho aí fora acredita que escolheu o programa de televisão, o prato do dia, o representante político, a cor do sapato, a marca de cigarro, a opinião firme sobre aborto / casamento homossexual / imposto sobre grandes fortunas / controle de natalidade / Deus / trabalho / Brasil / família / animais bem tratados ou não. No entanto, a ausência de leitura ou de conhecimento mais amplo sobre os assuntos não impede que a pessoa deite sua opinião em público, repetindo as palavras que ouviu do pai, ou que achou consistentes, ou que viu na TV alguém dizendo. Incapaz de sentir as próprias entranhas, de cuspir fora os embutidos morais que – voluntariamente – engole para não fazer feio aos demais.
Então se domado pela família, chicoteado pelo grupo social, marcado a ferro pela religião e cabresteado pelo chefe, este cidadão hipotético a quem me refiro vai ler como normal um animal que nasceu para o trabalho que não escolheu, sustentando terceiros. E que se tiver sorte, será bem tratado. Na sabedoria popular, na tradição oral passada adiante, o conformar-se com a própria situação está dentro das normas de etiqueta, do que se espera como razoável e sensato, para evitar transtornos ‘ao vizinho’.
Não será um porco escravo, útil para o lucro de uma minoria acima dos demais – pagantes silenciosos, que vai sensibilizar essa maioria que reza o terço dos hamsters, volta após volta na rodinha.
Vanguarda Abolicionista - Marcio de Almeida Bueno
Fonte: www.anda.jor.br/
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