HUMANIDADE, ANIMALIDADE, QUAIS FRONTEIRAS?
Não há de modo algum animais que escapem ao embargo quase sempre mortal do ser humano: Ele os cria de modo industrial, caça-os, apossa-se de seus territórios, pesca-os, realiza neles todo tipo de experiência, encarcera-os em zoológicos, força-os a executar números de circo, satisfaz-se ainda por fazê-los combater...É necessário lembrar que se mata por ano, na França, aproximadamente um bilhão e oitenta milhões de mamíferos e aves, além de quatrocentas e dez mil toneladas de peixe.
Poder-se-ia resumir as coisas pelo silogismo seguinte:
Apenas os seres de razão têm direito à justiça e à benevolência;
visto que os animais são desprovidos de razão, não há para com eles
nem justiça nem injustiça. Esse argumento, anunciado pela primeira
vez pelos estóicos (pessoas severas, inabaláveis), coloca que os
deveres de justiça estão circunscritos apenas à humanidade. Isso
significa que nenhum dos elementos de proximidade entre o ser humano
e os outros animais destacados pelos saberes positivos (proximidade
genética, “protocultura”, capacidades lingüísticas complexas,
disposições à empatia ...)não poderá recolocar em discussão uma
fronteira invisível, não localizável, que permite discriminar a ordem
dos fins(o ser humano) da ordem dos meios (o mundo animal).
Os teóricos do direito natural (XVII século) reafirmaram a postura
inabalável, apoiando-se na idéia que Deus colocou de improviso no
espírito humano um entendimento capaz de representar a lei natural,
o que os animais não saberiam fazer.
O argumento, secularizado, reconduz o motivo. Assim, se elas são úteis
(e o critério é amplo), as dores infligidas aos animais são moralmente
aceitáveis. Apenas crueldades inutilmente infligidas
são repreensíveis, de modo
que o ser humano degrada a humanidade nele deixando-se levar por tais
atos.
A noção de Kant dos deveres indiretos para com os animais leva em
consideração essa idéia: Não fazê-los sofrer inutilmente ou
por prazer é um dever que o ser humano tem para consigo mesmo, pois,
como são privados de razão, os animais não-humanos não saberiam
reconhecer nenhum dever moral. Portanto, os animais tornaram-se, sob
a pluma dos filósofos, nos laboratórios e, durante o percurso, no
sentido comum, essas ficções conceituais destinadas a delimitar o
campo do que é desprovido das qualidades que dão direitos e concedendo
alguma dignidade.
Uma tal dedução (possuir a razão para ver-se reconhecer direitos)
foi prontamente contestada, visto que ela põe o fundamento da consideração
moral nas competências intelectuais e não na capacidade a sofrer.
De resto, os estudos científicos vêm amparar essa postura, avaliando
os animais à medida do homem, marcando-os em função de suas aptidões
a aproximar-se de nós quanto mais altas são as suas performances?
Assim, coloca-se macacos diante dos computadores para ver de que eles
são capazes ...
Nesse sentido, desde 1993, numerosas personalidades, entre as quais
Peter Singer, professor de bioética na universidade de Princeton (Estados
Unidos), desenvolveram o projeto grandes símios, hoje preconizado pelos
defensores dos animais através do mundo. Esse projeto apóia-se na
idéia que os gorilas, orangotangos, chimpanzés, bonobos têm uma inteligência
e uma sensibilidade próximas do ser humano, o que os diferencia dos
outros animais. Desse modo, eles merecem, segundo esse projeto, beneficiar-se
de direitos, sem dúvida inferiores aos do ser humano, mas superiores
aos dos autros animais.
O professor Gary L. Francione, que tinha entretanto participado desse
projeto, em sua opinião, considera, após reflexão, que essa tese
poderia terminar por agravar a situação de todos os outros animais
não-humanos.
FLORENCE BURGAT
Filósofa, autora de “O animal nas práticas de consumo”, PUF, col.
“O que eu sei?”
P.S. Um dos principais obstáculos à disseminação das idéias do
projeto grandes símios é que um dos principais argumentos
apresentados é claramente ESPECISTA (ESPECISMO é um neologismo formado
para contestar o lugar particular concedido ao ser humano que seria
apenas um animal entre os outros).
Fonte: Revista Anti-vivisection – Nº 173 – julho de 2007
A condenação da violência contra os animais é muito antiga.
Cada época surgem vigorosos combatentes a favor e adversários da causa
animal: Pythagore, Porphyre, Plutarque condenam as práticas de sacrifício;
Montaigne solicita o tratamento bondoso para os bichos; Descartes os
reduz à máquinas insensíveis...Claude Bernard escreve uma defesa
da vivissecção, enquanto que Victor Hugo, Lamartine, Michelet engajam
a questão no plano político, contribuindo assim, na Europa, para
o nascimento das primeiras leis de uma tímida proteção dos animais
em meados do XIX século. Face à evidente continuidade dos seres vivos,
tão magnificamente pensada por Aristote, foi necessário dar-se
os meios de efetuar uma ruptura radical entre o ser humano e esses seres
vivos que, como ele, vêm ao mundo, sofrem, envelhecem e morrem.
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