Filosofia do Descaso II
Uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida
Sócrates
Porque
trabalhar o conceito de especismo nas aulas de Filosofia no Ensino
Médio? O que o especismo e sua superação, o veganismo, tem a ver com
Bom, para defender a necessidade mais que urgente de se trabalhar o conceito
de especismo nas aulas de Filosofia no Ensino Médio me fundamentarei
nas três características comumente atribuidas à filosofia nas obras
sobre a filosofia e seu ensino e filosofia no Ensino Médio, que são: a filosofia como pensamento conceitual, como saber que se faz dialogicamente e como pensar crítico radical.
Na
prática diária do ensino de filosofia percebe-se nitidamente, tanto por
parte dos docentes, quanto pelos manuais introdutórios à filosofia, que
o trabalho conceitual realizado não passa de reprodução do conceitos
“batidos” da história da filosofia; cabendo aos alunos copiar, decorar
e, em raríssimas exceções, uns seis alunos sairão ensino médio sabendo
o que Marx quiz dizer com ideologia, Locke com propriedade e Aristóteles com potência e ato.
O
hábito de divinizar as grandes mentes da história da filosofia e seus
respectivos conceitos, impede os professores de filosofia do Ensino
Médio de pô-los em xeque, ou que é melhor, partir deles para uma nova
visão.
É
nesse momento que entra a importância de trabalhar o conceito de
especismo e principalmente a abolição de sua prática, com os jovens
alunos. Pois, o descaso com a naturalização de tal preconceito é
oriundo da miopia intelectual, da incapacidade dos docentes de
questionar criticamente os discursos (e posturas provenientes deles)
dos deuses do olimpo especistas filosófico e científico.
Especismo
é um conceito novo, mas sua prática é milenar. Ele está na pirâmide
ética-biológica de Aristóteles, na moral cristã tomista, no animal
máquina cartesiano, na ciência moderna e contemporânea, na indústria
cultural atual e na prática diária de nossos jovens alunos.
No
entanto, para o professor de Filosofia que queira desenvolver uma
reflexão, uma análise e uma proposta de superação dessa base
filosófico-científico de biocídios é necessário manter um intenso
diálogo com as ciências, com a própria filosofia e, não menos, com seus
alunos. É através do confronto de idéias, do debate participativo com
os alunos que vá além de uma simples “roda de discussão” , de uma
conexão direta com os outros saberes com o objetivo de romper com o já
estabelecido, que a filosofia no seu carácter dialógico apresenta-se
como arma, como ferramenta contra a milenar exploração do não-humano.
O
diálogo filosófico parte de questionamentos, questionamentos nascem das
dúvidas e as dúvidas originam-se do descontentamento, da desconfiança,
do desconforto diante de um estado de coisas tradicionalmente
estabelecido e inalterável. É desse descontentamento, das inquietações
com a realidade à volta que surge a filosofia como um pensar crítico
radical.
Sem
dúvida, sem suspeita, sem ceticismo, a filosofia nunca cumprirá com sua
verdadeira função social, como bem disse Horkheimer, que encontra-se na
crítica ao que está estabelecido. O fato de nossos jovens não serem
formados para contestar, discordar, desobedecer,
duvidar, é um infeliz indicativo de que o carácter dialógico da
filosofia e sua espinha dorsal, o pensar crítico radical não faz mais
parte da prática docente filosófica.
Quando se fala de uma prática docente quietista, reacionária, é interessante notar que -
paradoxalmente – a alegoria da caverna de Platão tem um lugar de honra
nas aulas de filosofia. Porém, que uso é feito dessa belíssima passagem
da República: político, gnosiológico, pedagógico... acredito
que nenhum deles. Como é possível uma pessoa que se diz professor de
filosofia não procurar sair da caverna ideológica do consumo imoral de
produtos extraidos sob tortura de seres tão sensíveis quanto ele mesmo?
O
que falta para os atuais professores de filosofia sairem de suas
cavernas antropocêntricas, especistas, mecanicistas? Um daimon? Passar
por um processo maiêutico às marretadas? A filosofia que eles arrotam
em sala de aula não lhes admira mais? Não lhes espanta mais?
A poltrona da passividade (entenda-se imoralidade)que está no fundo da caverna do descaso é
demasiadamente aconchegante, impedindo que os docentes de fillosofia do
Ensino Médio tirem suas bundas de lá e realmente cumpram com sua função
filosófica de questionar a si mesmos, criticamente, revendo seus
hábitos e discursos. Enquanto essa utopia não se
concretiza, a juventude orfã de filosofia e crítica – mas adotada por
um pai anthropos e uma mãe cartesiana - , continuará sendo vítima (e reprodutora) de um sistema econômico, científico e cultural especista, ou seja, biocida.
As
filiais de Auschwitz, Treblinka e Sobibor estão funcionando 24 horas
por dia, sete dias por semana em quase todos os países do mundo. Essas
filiais continuam funcionando a todo vapor com o aval de quase toda
população mundial simplesmente, por que o “produto” processado lá
dentro mudou: saiu o humano e entrou o não-humano. Tal atitude com o
primeiro é eticamente condenável, com o segundo... a aceitação desses campos
de concentração de não-humanos é fruto de um ensino banalizador do mal,
da aceitação do inaceitável, de uma filosofia que não ensina a
reaprender a ver o mundo. Eis a filosofia do descaso.
Filosofia
do descaso é falar da filosofia como pensamento conceitual, dialógico e
como crítica radical sem pensar o conceito de especismo e seus
correlatos – biocídio, desigualdade, injustiça – sem dialogar com as
ciências “da vida” e as humanidades especistas sua incoerências; e
conclusivamente, filosofia do descaso é se dizer que crítica radical e
não ir na raíz da produção alimentar, vestuária, das experiências
biomédicas e das práticas lúdicas e esportivas sádicas que utilizam
outras espécies.
Em
oposição a essa filosofia do descaso, imoral, servil e passiva que é
ensinada hoje surge uma nova filosofia chamada : veganismo. A filosofia
vegana é, como expressou Savater, um “elemento de guerrilha e
resistência contra os dogmas que querem nos impor”. O veganismo, como
materialização da filosofia como pensamento crítico radical, assume a
função de demolidor do status quo, da tradição moral especista e
antropocêntrica. A filosofia vegana não propõe reforma e sim abolir a
moral tradicional.
A
crítica vegana é profunda e radical, incomoda e provoca, pois, defronte
a ordem e o progresso, é subversiva. Por isso, o veganismo presupõe
coragem e persistência diante do risco. A coragem da filosofia vegana
de questionar e lutar pela abolição dos valores e crenças estabelecidos
é contraposta pela covardia e preguiça intelectual daqueles que
preferem o caminho mais fácil de sempre aceitar o que é conhecido, o
dado, o estabelecido acriticamente.
Leon
Denis é professor de Filosofia do Ensino Médio da Rede Pública do
Estado de São Paulo, co-autor do projeto "Mens sana in corpori sano"
(veja mais na edição 4 da Revista dos Vegetarianos)
- Criado por .
- Acessos 8986