Abolicionistas X Protetores: tem sentido essa oposição?
Sou vegetariana ética há muitos anos, e foi para mim uma grata surpresa descobrir o quanto já havia de pensamento sério e científico sobre o tema dos direitos animais. Até pouco tempo, em minha ignorância, acreditava que os vegetarianos éticos ainda estavam dispersos e desorganizados, conformados com a definição de esquisitões limítrofes e delirantes.
Mas infelizmente descobri também que existe toda uma corrente de vegans que cultivam um comportamento equivocado, sintoma, claro, das nossas inevitáveis imperfeições.
Refiro-me à antipatia, agressividade, verdadeiro ódio que muitos setores do veganismo dispensam aos que, na falta de melhor definição, são intitulados de "protetores dos animais". Pessoas que dedicam todos os seus recursos a ajudar animais em situação de abandono nos ambientes urbanos.
O argumento é que esse trabalho é enxugar gelo – e é mesmo – e que se constitui no fim das contas numa medida bem-estarista que só faz retardar a evolução da causa – do que discordo.
É verdade que a maioria dos protetores (de gatos e cachorros) é onívoro e resiste em pensar sobre a incoerência dessa postura. Mas a maioria dos filósofos, por exemplo, também é, e são igualmente incoerentes, pois não há como pensar profundamente, por exemplo, o conceito de ética, sem chegar à questão do especismo. Isso invalida toda a filosofia? Torna toda a filosofia inútil e bem-estarista?
A primeira alegação é de que a proteção de gatos, cachorros e outros animais "de estimação", praticada na forma de resgate e abrigo, é inútil quantitativamente. E é mesmo. São milhares de abrigos informais e ongs no Brasil inteiro, sem chegar a fazer uma mínima diferença na quantidade de animais abandonados e/ou maltratados. Sabemos que só um programa governamental de esterilização em massa, acompanhado de educação para os direitos animais, poderia ter algum resultado nessa estatística.
Mas, e a questão do sofrimento, a questão do indivíduo? Querer abordar o sofrimento dos animais apenas no atacado, apenas como multidão sem rosto, isso é abolicionismo? Animais só existem no coletivo, são só "eles"? Então não há indivíduo não-humano, só há "rebanho"? Devo ser insensível ao drama, digamos, "pessoal" de um determinado animal?
Essa postura me parece identificada com a do segmento mais popularizado dos ecologistas, aqueles que, alheios ao conceito não-antropocentrista da ecologia profunda, parecem preocupar-se com a meio ambiente não como somatório das individualidades e direitos de todos os seres que o compõem, mas como uma espécie de espetáculo e celeiro permanente para uso da humanidade.
Essa negação do indivíduo, essa suposição de que ele deve ser imolado por um suposto futuro mais sorridente para a maioria, me lembra perigosamente a propaganda de regimes totalitários e de exceção, cujo desenvolvimento funesto todos conhecemos.
Cabe comparar com um fato comum durante o nazismo na Alemanha. Sabemos que as vítimas somaram milhões, e pouco podia ser feito para ajudá-las. Mesmo assim, muitos milhares de vidas foram salvas por pessoas que lhes deram abrigo, sob risco de execução sumária. Salvar essas vidas não valeu a pena? Seria melhor que não tivessem sido salvas?
A segunda alegação é de que a atividade dos protetores dos animais urbanos atrasa o avanço da causa abolicionista, pois cria a ilusão de que "algo já está sendo feito", de que "o problema está sendo resolvido", etc... Ora, uma das grandes preocupações dos protetores é justamente convencer a população de que praticamente nada está sendo feito, de que não há políticas governamentais, de que a manutenção dos abrigos é uma luta desesperada e diária por mais um grão de ração, por mais uma gota de antibiótico. De que não há um lugar lindo e limpinho para onde você manda os seus animais indesejados, sem que sua consciência fique doendo muito. Muitos protetores têm projetos dirigidos à informação do público e a pressionar as autoridades. Muitos vão à mídia denunciar a questão. Todos trabalham pela conscientização da população.
Tanta energia é gasta para combater e questionar os protetores, com tanta virulência, que é de se pensar o que motiva essa postura. Sabemos que o trabalho intelectual tende a ser considerado "nobre", superior, enquanto que o braçal seria próprio de inferiores e pouco valorizado. Seria a oposição aos protetores uma forma de abolicionistas intelectualizados valorizarem seu status, querendo dizer "olha só como EU sou engajado, como eu sou esclarecido, como eu sou DIFERENTE desses aí"?
Desqualificar um protetor, ainda mais que regra geral eles não tem argumentos científicos e lógicos preparados para sua defesa, chamá-los de burros, malucos, histéricos, insinuar que na raiz do "problema" está o fato de que 99% dos protetores são mulheres (horror!), isso é coerente com o pensamento abolicionista? No que lucra a causa dos direitos animais com essa atitude? Porque tanta munição gasta com fogo amigo?
Em seu artigo ABOLIÇÃO SIM, SEGREGAÇÃO JAMAIS, "a escritora Simone Nardi analisa a postura segregacionista de parte do movimento de defesa animal, traça paralelos com outras formas de sectarismo e indica as implicações desta posição."
Mesmo que o texto de Simone não seja dirigido especificamente para a questão exposta aqui, e sim a outra igualmente pertinente, cabe o exercício de lê-lo, pela primeira vez ou novamente, dessa vez aplicando os argumentos de Simone contra o sectarismo à questão do preconceito contra os protetores.
Abolição sim, segregação jamais, Simone Nardi, Pensata Animal
Liège Copstein
sitiodosbichos.blogspot.com
Mas infelizmente descobri também que existe toda uma corrente de vegans que cultivam um comportamento equivocado, sintoma, claro, das nossas inevitáveis imperfeições.
Refiro-me à antipatia, agressividade, verdadeiro ódio que muitos setores do veganismo dispensam aos que, na falta de melhor definição, são intitulados de "protetores dos animais". Pessoas que dedicam todos os seus recursos a ajudar animais em situação de abandono nos ambientes urbanos.
O argumento é que esse trabalho é enxugar gelo – e é mesmo – e que se constitui no fim das contas numa medida bem-estarista que só faz retardar a evolução da causa – do que discordo.
É verdade que a maioria dos protetores (de gatos e cachorros) é onívoro e resiste em pensar sobre a incoerência dessa postura. Mas a maioria dos filósofos, por exemplo, também é, e são igualmente incoerentes, pois não há como pensar profundamente, por exemplo, o conceito de ética, sem chegar à questão do especismo. Isso invalida toda a filosofia? Torna toda a filosofia inútil e bem-estarista?
A primeira alegação é de que a proteção de gatos, cachorros e outros animais "de estimação", praticada na forma de resgate e abrigo, é inútil quantitativamente. E é mesmo. São milhares de abrigos informais e ongs no Brasil inteiro, sem chegar a fazer uma mínima diferença na quantidade de animais abandonados e/ou maltratados. Sabemos que só um programa governamental de esterilização em massa, acompanhado de educação para os direitos animais, poderia ter algum resultado nessa estatística.
Mas, e a questão do sofrimento, a questão do indivíduo? Querer abordar o sofrimento dos animais apenas no atacado, apenas como multidão sem rosto, isso é abolicionismo? Animais só existem no coletivo, são só "eles"? Então não há indivíduo não-humano, só há "rebanho"? Devo ser insensível ao drama, digamos, "pessoal" de um determinado animal?
Essa postura me parece identificada com a do segmento mais popularizado dos ecologistas, aqueles que, alheios ao conceito não-antropocentrista da ecologia profunda, parecem preocupar-se com a meio ambiente não como somatório das individualidades e direitos de todos os seres que o compõem, mas como uma espécie de espetáculo e celeiro permanente para uso da humanidade.
Essa negação do indivíduo, essa suposição de que ele deve ser imolado por um suposto futuro mais sorridente para a maioria, me lembra perigosamente a propaganda de regimes totalitários e de exceção, cujo desenvolvimento funesto todos conhecemos.
Cabe comparar com um fato comum durante o nazismo na Alemanha. Sabemos que as vítimas somaram milhões, e pouco podia ser feito para ajudá-las. Mesmo assim, muitos milhares de vidas foram salvas por pessoas que lhes deram abrigo, sob risco de execução sumária. Salvar essas vidas não valeu a pena? Seria melhor que não tivessem sido salvas?
A segunda alegação é de que a atividade dos protetores dos animais urbanos atrasa o avanço da causa abolicionista, pois cria a ilusão de que "algo já está sendo feito", de que "o problema está sendo resolvido", etc... Ora, uma das grandes preocupações dos protetores é justamente convencer a população de que praticamente nada está sendo feito, de que não há políticas governamentais, de que a manutenção dos abrigos é uma luta desesperada e diária por mais um grão de ração, por mais uma gota de antibiótico. De que não há um lugar lindo e limpinho para onde você manda os seus animais indesejados, sem que sua consciência fique doendo muito. Muitos protetores têm projetos dirigidos à informação do público e a pressionar as autoridades. Muitos vão à mídia denunciar a questão. Todos trabalham pela conscientização da população.
Tanta energia é gasta para combater e questionar os protetores, com tanta virulência, que é de se pensar o que motiva essa postura. Sabemos que o trabalho intelectual tende a ser considerado "nobre", superior, enquanto que o braçal seria próprio de inferiores e pouco valorizado. Seria a oposição aos protetores uma forma de abolicionistas intelectualizados valorizarem seu status, querendo dizer "olha só como EU sou engajado, como eu sou esclarecido, como eu sou DIFERENTE desses aí"?
Desqualificar um protetor, ainda mais que regra geral eles não tem argumentos científicos e lógicos preparados para sua defesa, chamá-los de burros, malucos, histéricos, insinuar que na raiz do "problema" está o fato de que 99% dos protetores são mulheres (horror!), isso é coerente com o pensamento abolicionista? No que lucra a causa dos direitos animais com essa atitude? Porque tanta munição gasta com fogo amigo?
Em seu artigo ABOLIÇÃO SIM, SEGREGAÇÃO JAMAIS, "a escritora Simone Nardi analisa a postura segregacionista de parte do movimento de defesa animal, traça paralelos com outras formas de sectarismo e indica as implicações desta posição."
Mesmo que o texto de Simone não seja dirigido especificamente para a questão exposta aqui, e sim a outra igualmente pertinente, cabe o exercício de lê-lo, pela primeira vez ou novamente, dessa vez aplicando os argumentos de Simone contra o sectarismo à questão do preconceito contra os protetores.
Abolição sim, segregação jamais, Simone Nardi, Pensata Animal
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