Alimentos Naturais
Notas para uma conferência no
II Ciclo de Debates sobre Alimentos, Arte e Cultura.
Faculdade de Farmácia-UFRJ (out/92)
Do ponto de vista do fabricante, ou do ponto de vista do consumidor, a conceituação do termo NATURAL, em alimentos, tende a ser muito diferente. Vamos tentar construir um conceito do ponto de vista do profissional de saúde pública, aqui, após identificar o conceito industrial e do consumidor.
Para identificar o conceito do fabricante, opta-se por observar o que existe no mercado. Natural é o sorvete que, em vez de ser todo artificial, contem uma parcela de fruta ou de sua polpa industrializada. Isso não significa que esse sorvete não contenha diversos aditivos químicos, inclusive para "reforçar" o sabor, a cor ou o aroma da fruta ali colocada insuficientemente.
Natural, ali, é também o suco que, ao contrário dos pós artificiais para refresco (caso do Tang), são feitos com a fruta e não contém, então, nem corante, nem aromatizante, adicionados. É o caso do suco Maguary e similares, em garrafa. Mas estes contém conservantes químicos, para inibir o crescimento microbiano. Ao contrário, os da marca Superbom, são pasteurizados, para destruir a flora microbiana, dispensando inclusive o conservante. Um seria mais natural que o outro?
Natural, para o fabricante, é ainda o iogurte sem adição de polpa de fruta ou cereais. Quer dizer, qualquer produto sem outra adição, é natural. Assim, o leite não achocolatado é leite natural, o pão sem manteiga seria natural, e a água mineral é natural. Para alguns consumidores e copeiros, a água se divide em natural e torneiral. Ou ainda em gelada ou natural (sem gelo). O mate leão, em copinhos, embora conservado quimicamente, é vendido e anunciado como natural, para diferenciar do outro tipo, que tem sabor limão e, portanto, não tem o sabor natural de mate.
Mesmo o Tang, que é açúcar colorido e aromatizado, opta por colocar aromas extraídos da laranja e, então, anunciar, no rótulo, como "contém aroma natural de laranja", induzindo a erro os consumidores.
Natural também é o conjunto de derivados da soja, como queijo de soja, leite de soja, farinhas de soja... e alimentos alternativos, como feijão azuki e mesmo grão de bico e trigo moído. A carne vegetal, feita de soja ou de glúten, é também apregoada e aceita como natural. E mesmo aditivos químicos hoje são desenvolvidos pela biotecnologia, buscando caracterizá-los como naturais. Ou seja, legalmente, alguns aditivos passam a ser naturais, propiciando rótulos com o termo natural, mesmo nos países com legislação mais rígida e consumidores mais exigentes.
A questão não está limitada ao campo da saúde pública. Nos EEUU, por exemplo, a regulamentação do emprego desse termo, em rótulos, é preocupação principalmente do Ministério do Comércio, mais que da FDA ou do Ministério da Saúde. Por que? Ora, porque propicia práticas comerciais lesivas, prejudicando a concorrência empresarial, antes de prejudicar a saúde ou o bolso do consumidor.
O CONCEITO EM QUESTÃO
O que seria natural? Fica difícil estabelecer uma definição geral. Na verdade, uma alface é tão natural quanto um bife. E se aquela for cultivada com agrotóxicos, adubos químicos, água poluída na irrigação... enquanto o bife resultar de um boi alimentado com grãos produzidos organicamente (sem adubação química ou agrotóxicos), criado em ambiente e pastos saudáveis em vez de confinado, sem emprego de anabolizantes, abatido sem dor ou crueldade, tendo depois sua carne conservada sem aditivos e, até mesmo, sem congelamento (consumo imediato, após breve resfriamento), então é até possível considerar que esta carne devesse ser considerada mais natural que a alface...
Existe, contudo, uma percepção que associa produtos vegetais ao natural. E o próprio naturismo estaria associado ao vegetarianismo.
Para o consumidor, poucas coisas parecem menos naturais que os enlatados e os refrigerantes. Mas é possível - como vemos no mercado europeu - produzir refrigerantes sem conservantes (em vez disso, USA-SE a pasteurização), sem corantes e com suco natural da fruta, além de água e gás carbônico. Não seria esta a fórmula básica para um refrigerante natural?
Dentro de suas peças publicitárias, a CICA vem, ainda que ímida e discretamente, informar que suas conservas vegetais são produzidas apenas com "vegetal, água e sal" e, portanto, sem nenhum aditivo químico. Ou algo como... natureza, água e sal. No entanto, mesmo neste caso, o natural pode ser questionado em suas infinitas graduações: se, em vez de embalagem metálica - que permite migração de chumbo ou estanho para o alimento - se optasse por uma embalagem de vidro, não teria um produto final ainda mais natural?
BUSCANDO RESPOSTAS
A construção de uma definição, para fins legislativos, parece demandar a segmentação dos produtos alimentares. Ou seja, produzir uma definição para sucos naturais, outra para sorvetes naturais, outra para conservas vegetais naturais etc. Ou simplesmente proibir o uso da palavra natural nos rótulos e nas propagandas, o que talvez fosse mais lógico, justo e inteligente, além de, claro, mais prático.
Alimento produzido organicamente, esta é outra definição que terá que ser estabelecida, regulamentada e praticada a curto prazo. Exercer esse controle talvez traga dificuldades operacionais; mas poderia haver uma contrapartida empresarial, a exemplo do que a ABIC vem fazendo com o café. Ou seja, uma associação que fiscalizasse seus membros e a eles concedesse um selo de garantia.
Vale observar que, para a viabilização de linhas ou dietas como vegetarianas, macrobióticas etc. não é preciso a existência, no mercado, de alimentos ditos naturais, uma vez que nenhuma delas exige o consumo dessa categoria de alimento. Ademais, inexiste, salvo engano, uma linha dita naturista de consumo alimentar, fundada no consumo de alimentos industrializados. Portanto, não é por essa via que se poderia identificar e explicar a crescente adoção desse termo natural nos rótulos e anúncios publicitários no Brasil.
O termo natural, como vemos, é de natureza diversa de termos como, por exemplo, kosher, produzido segundo as normas judaicas, para esse tipo de consumidor. E também não é da mesma categoria do termo vegetal, pois se não existe uma bem definida dieta naturista, não há dúvida que pode existir uma dieta estritamente vegetariana, onde não se incluiriam alimentos de origem animal. Note-se, dentre outros exemplos possíveis, o caso dos preparos em pó para produção de gelatinas. Estes tantos podem ser produzidos a partir do colágeno bovino, como a partir de algas. Tanto pode ser uma gelatina de origem vegetal quanto animal. E isso, certamente, deveria estar bem claro na rotulagem.
PERCEPÇÕES E MERCADOS
Não se pode acreditar que exista uma efetiva tentativa de mentir para o consumidor. Este, certamente, não pode se dizer enganado, pois compreende como risível o anúncio, nas praias, de sanduíches naturais de peito de peru ou ricota, dentre outros ingredientes igualmente industrializados, ou mesmo enlatados, se não inclusive artificiais ou contendo aditivos químicos variados. São fatos que violam, com certeza, as fronteiras do que a percepção pública assume como natural.
Poderia ser questionado que o consumidor não está rigidamente ancorado no significado bromatológico do natural, e sim no significado semiológico, consumindo mais símbolos que, verdadeiramente, substâncias. E poderia ser levantado que, nesse sentido, as normas de identidade e qualidade, em particular aquelas que tratam de rotulagem e propaganda, deveriam cuidar não apenas do substantivo, mas também do simbólico. Nesses casos, o consumidor, embora não exatamente enganado, estaria, pelo menos, sendo induzido a erros.
Nesse amplo, complexo e variado contexto, torna-se muito dificultoso delimitar, tecnicamente, os limites do alcance de uma norma de rotulagem. Inclusive porque é dificultoso delimitar o significado do termo natural. Um aspecto, porém, parece óbvio. Não estamos aqui tratando, em geral, de novos produtos, estranhos ao mercado e ao consumidor. E´ apenas o agregar de uma nova denominação, uma maquiagem semântica, sobre alimentos que já estavam há anos no mercado, sendo de consumo tradicional. A introdução do termo natural pode, então, oferecer mais atração para uma determinada marca, em relação à outra que, talvez, tenha apenas retardado o passo de sua, digamos, naturalização. O Lanjal, por exemplo, deixou de ser conservado quimicamente e, agora, se apresenta como Natural, o que, teoricamente, poderia colocá-lo em vantagem contra outras marcas de sucos congelados. Ou, pelo menos, estimular o seu consumo junto a segmentos que, antes, o evitavam, devido aos conservantes adicionados. Assim, um refrigerante natural ampliaria o volume de vendas não apenas tomando consumidores de outra marca, como atraindo novos consumidores para esse tipo de produto. A Diet Coke parece ser um exemplo disso, na medida que vem captar consumidores que antes não ingeriam o produto açucarado.
Para pensar, com mais profundidade, o significado do termo natural em rótulos de alimentos, parece conveniente pensar que alimento natural é aquilo que a natureza criou para ser naturalmente comido. E, salvo engano, apenas duas substâncias estariam incluídas nessa categoria: o leite e o mel. Mas, o leite, exclusivamente para os filhotes da mesma espécie, claro. Da mesma forma, o mel seria para a colméia. E não para o homem industrializar e comer.
Da mesma forma, um grão de trigo, ou de milho, está na natureza para dar origem a outra planta, de trigo ou milho, e não para virar pão ou pipoca. Da mesma forma que um ovo existe não para virar omelete, e sim para gerar outra ave.
Olhando menos filosoficamente, com mais tolerância, natural seria aquela cereja vegetal, in natura ou mesmo em conserva, mesmo em lata, fazendo contraponto com a cereja artificial, aquela feita de jujuba, colorida quimicamente, para enfeitar coquetéis. Também natural seria aquele iogurte com morango que, em vez de corantes e aromatizantes artificiais, teve adição unicamente de polpa da fruta. Mas continuaria sendo natural se a sua cor, em vez de advir do vermelho do morango, adviesse do vermelho do corante natural extraído da beterraba ou da casca da uva ?TENTANDO REGULAMENTAR
Pesquisa realizada na Inglaterra apontou que 79% dos anúncios de alimentos naturais eram inaceitáveis (num total de 670 produtos). E apenas 9% da rotulagem e 6% da propaganda poderiam ser considerados como legítimos. Além disso, considerava que terminologias como full of natural goodness, naturally better ou natural choice não tinham sentido e serviam, apenas, para induzir o consumidor a erro.
O Comitê Assessor de Alimentos, do Ministério da Agricultura do Reino Unido, entende que natural pode ser usado apenas para alimentos simples (não para formulações e misturas), tradicionais, aos quais nada tenha sido adicionado, e que tenham sido processados apenas até torná-los adequados para o consumo. Isto incluiria, por exemplo, congelamento, concentração, fermentação, pasteurização, esterilização, defumação (natural, sem aromas artificialmente adicionados) e processos tradicionais de cozimento: panificação, tostagem e branqueamento.
Já o descoramento, oxidação, defumação (artificial, mediante aditivos aromatizantes) e hidrogenação (caso da margarina, por exemplo), seriam processos não aceitáveis para o termo natural.
Não é diferente a complexidade para o uso do termo organicamente cultivado. Nos EEUU, por exemplo, o IFT-Instituto de Tecnologistas de Alimentos, e de uma perspectiva científica, entende que todo alimento, seja de fonte animal ou vegetal, é um alimento orgânico, pois deriva sempre de um organismo vivo, contendo carbono em sua estrutura química. Portanto, em vez de usar estritamente o termo orgânico, propõe que este esteja sempre ligado a outra palavra, como organicamente produzido ou organicamente cultivado.
CONCLUSÃO
Quando uma empresa anuncia ou rotula como natural , ela não está, supostamente, pretendendo vender apenas um produto, mas sim um estilo de vida. Dietéticos, naturais, orgânicos, alternativos, todos ficam na mesma prateleira do supermercado, e se destinam aos mesmos consumidores. Ali eles se encontram, ainda que como no caso típico dos restaurantes naturais, para comer frituras!
Materializamos o produto, em vez de controlar a conduta. Em vez de adotarmos uma relação natural com a comida e com o ato de comer, em vez de autoconstruirmos essa renaturalidade, optamos por tentar adquiri-la no mercado, transformadas em produtos. Em vez de adotarmos uma dieta natural, acentuamos, dia a dia, uma conduta dietética afastada da natureza, mas pretensamente composta de itens ditos naturais. Em vez de comer em horários convencionais, regularmente, com tranquilidade, em volumes apropriados, optamos por comer apressados, de pé, sem mastigar direito, em meio a fumantes, estressadamente.
Uma coisa é querer circunscrever o objeto em observação, esse termo alimento natural e, então, analisá-lo pelo prisma estritamente químico-bromatológico, fazendo uso de indicadores de nutrição e toxicologia. O problema é que tais indicadores são muito bons para estudos circunscritos ao espaço do laboratório analítico, também bromatológico. E quando o termo natural emerge para surgir no rótulo, não é mais unicamente de bromatologia que estamos falando, não é já unicamente pelo mundo da química que estamos sendo abraçados, mas sim pelo mundo dos símbolos e representações sociais. Nesse contexto, a regulamentação do uso desse, digamos, natural claim, deve transcender os fenômenos circunscritos aos tubos de ensaio, se preocupando com o espaço que a comida ocupa nas mentes e corações. Ou, em termos práticos, objetivos e operacionais, se o Estado pretende regulamentar alguma coisa nesse campo, fundado em compromissos com a proteção do consumidor e com a saúde pública, então, melhor seria coibir o uso desregrado e indiscriminado dessa terminologia - na maior parte das vezes visando induzir o consumidor a erro - e apoiar campanhas que evidenciem que uma dieta natural não é o somatório de alimentos ditos naturais dentro do cardápio. Mas, em vez disso, um relacionamento mais natural com a comida, a bebida, considerando horários, quantidades, variedades e, mais que tudo, uma ingestão serena e uma digestão tranquila. Uma alimentação natural pode, em suma, ser perfeitamente alcançada, ao menos no primeiro estágio, sem o consumo de alimentos ditos naturais.Luiz Eduardo Carvalho
Prof. da Faculdade de Farmácia da UFRJ
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