Tour Vegana de Alan Chaves - Sem Lactose
Em um pedaço de terra em que o rebanho bovino é de 170 milhões de unidades (mais boi que gente) e o churrasco de domingo é tão tradicional como a troca da guarda no Palácio de Buckingham, como explicar pra geral que o veganismo pode ser uma boa? Aquele velho papo de que o pum da vaca vai abrir um rombo na camada de ozônio e fritar a negada aqui embaixo parece não dar muito resultado. O argumento de que mais da metade dos cereais produzidos no mundo (o que daria para acabar com a fome no planeta) é usado para alimentar bois destinados ao abate também não cola. Nego não troca uma boa maminha pela paz de consciência, nem a pau!
Então eis que aparece um sujeito com uma faca em cada mão, receitas aprendidas em anos de veganismo (filosofia de vida que exclui qualquer forma de exploração e crueldade com os animais) e disposição para correr o país inteiro dando dicas de como comer legal sem precisar foder com o próprio habitat. O segredo? Não falar em veganismo.
Simplesmente cozinhar, ensinar, conversar. Sejam quais forem os alunos (veganos ou não), seja qual for a cidade (da “europeia” Gramado, na serra gaúcha, à calorenta Natal, no Rio Grande do Norte). Essa foi a peripécia de Alan Chaves, cozinheiro vegetariano ou, como prefere, ativista gastronômico, sujeito que meteu o pé na estrada em sua primeira Vegan Tour.
A ideia começou depois que Alan se formou no curso técnico de gastronomia. Como já tinha contatos no meio do punk e do hardcore (há anos pilota a bateria da banda XamorX), teve uma ajuda para marcar as primeiras datas. “Toda a tour foi ajudada por pessoas do hardcore. Se não era a galera do hardcore, eram roqueiros. Em várias cidades eu descia do busão e não sabia quem iria me receber. Aí vinham uns caras com tattoo, com camiseta de banda de HC e eu já ficava mais aliviado. Foi legal porque eu conheci várias cenas que são bem pequenas, mas com um pessoal muito ativo e organizado.”
Na estrada, a pilha foi ensinar molhos e fazer uma ação chamada Salvando seu Pão com Soja. “Na real esse quadro do pão com soja é mais pra ajudar quem tá começando no vegetarianismo, porque nego não sabe o que fazer e fica só comendo pão com soja dentro. Alguns desistem do negócio por causa disso”, explica Alan.
A estreia de Alan foi tensa. Na cidade de Guarapuava (PR), ele testaria sua didática sem lactose para uma plateia formada por incautas estudantes de Nutrição, em uma semana acadêmica. “Mano, nesses eventos ninguém quer assistir aula, né? E eu não gosto muito desse ambiente acadêmico, fiquei nervoso pra caralho e desembestei a falar. Falei sobre decoração de pratos e, aos poucos, fui conquistando a turma. Depois me senti confiante e acho que meio que choquei a galera ao contar que morava em squat e aproveitava alimentos do resto da feira (risos)”, lembra.
Fora o choque das universitárias por saber que o professor já tinha vivido numa ocupação, a estreia em Guarapuava foi perfeita. “Me pagaram hotel bacana e passagem aérea.” No entanto, antes de seguir viagem, o cara embestou que tinha que voltar para casa e voou mais de 1.000km até Porto Alegre. Motivo? Cozinhar para a trupe da banda Ratos de Porão, que tocaria numa cidade vizinha à capital gaúcha. “Eu tinha convidado os caras, como é que eu não ia estar? Peguei a grana que ganhei e comprei passagem de ida e volta, só pra cozinhar pra eles.”
Após encher a pança do pessoal do RDP com o melhor de seu veganismo, Alan tomou o primeiro voo de volta a Curitiba. Depois do cagaço de ter que debutar a tour num ambiente acadêmico, soltou os cachorros, improvisando uma cozinha no meio de um show de hardcore. “Cara, como tinha só 15 minutos para apresentar e ir pegar o avião pra próxima cidade, dei uma porrada com as duas mãos na mesa e perguntei: 'Qual o princípio do punk? É o faça-você-mesmo, né? Mas como é que vocês vão protestar e ter controle sobre a vida que levam se não sabem o que estão colocando pra dentro do próprio corpo? Se não têm autonomia para fazer a própria comida? Aí eu abria o pão, colocava a proteína de soja dentro e falava: “Pão com soja? Puta que pariu! Não dá!” Foi nessa toada nada ortodoxa que o cara conseguiu prender a atenção do rapeizo que, até então, só se preocupava em descansar para assistir à próxima banda do evento. Foi num ambiente desses que nosso cozinheiro e ativista gastronômico conseguiu que amantes da música rápida aprendessem a fazer molho pesto. Dá pra acreditar?
“Depois do show o cara que organizou tudo veio me contar que era a primeira vez que ele via a galera parar para ouvir alguém falando.” Segundo ele, o que contou ponto para prender a audiência foi a simpatia, o humor, coisa rara de se ver em ativistas e militantes (seja de que causa for). “Não dá pra eu querer cozinhar pra galera e antes de servir mostrar um documentário com um monte de animal morto e desossado, né?” Alan aproveita para lembrar que a tour, além de não ter a intenção de embrulhar o estômago de ninguém, também não tinha a pretensão de converter o Brasil inteiro ao não consumo de carne. “O que eu quero é que as pessoas tenham mais autonomia dentro da cozinha, sendo vegetarianas ou não.”
Fazer com que neófitos dessem conta de grandes pratos também não estava entre as preocupações do chef. Flambar, meter fogo em caçarolas? Nada disso. “Eu até falava que tenho livros que me ensinaram a fazer pratos que voam e brilham no escuro, mas eles não me adiantam de nada porque eu não queria fazer aquelas coisas em casa (risos). Às vezes eu achava que tava queimando meu filme como cozinheiro quando dizia isso, mas no final sempre dava certo. Aliás, o lema dessa tour foi Relaxa que no fim sempre dá certo!”
Depois de cozinhar entre o suor e os altos decibéis do HC curitibano, Alan foi ministrar palestra no extremo oposto, em um tranquilo restaurante indiano da capital paranaense. “Esse também foi muito legal, porque o dono era um cara meio Professor Pardal. Com peças de bicicleta, ele inventou uma máquina para afinar massa. Com cano de PVC, inventou outra para fazer os hambúrgueres de soja.”
Foi o mesmo Professor Pardal que deu jeito no liquidificador de Alan. Comprado em um saldão, o eletrodoméstico saiu baratinho, mas veio sem a tampa. O senhor Pardal fuçou no baú e arranjou uma peça para que os molhos não fossem degustados pelos azulejos do pico.
Veganismo na Baixada Fluminense
Marinheiro de primeira viagem no lance das tours culinárias, Alan adotou a logística estilo asterisco, saca? Do Paraná, pulou uma faixa considerável de terreno (chamada Estado de São Paulo) e desembarcou no Rio. Sem um puto no bolso. “O pessoal que tinha me contratado em Guarapuava ainda não tinha depositado a grana.” Mesmo duro, aceitou o desafio de ir cozinhar (na faixa) em um almoço para o vocalista da banda XConfrontoX. “Ele queria me contratar, mas tava sem grana e a mulher dele tinha acabado de perder o trampo. Porra, era o cara do XConfrontoX, uma banda bacana, fiz de graça!”
Detalhe: O local do rango seria em São João do Meriti, Baixada Fluminense. Outro detalhe que ainda não foi contado é que, para essa primeira trip, Alan decidiu comprar umas malas vintage bem estilosas, mas percebeu que as lindas valises eram mais pesadas que carma ruim e praga de madrinha, e necessitavam ser permanentemente transportadas naqueles carrinhos de rodoviária. Aliás, só percebeu a carga pesada em São João de Meriti. “Desci do busão na Baixada Fluminense com 60kg de mala pra carregar. Cara, foi impressionante, as escadas rolantes estavam estragadas e ninguém me ajudou. Teve até um filho da puta que parou pra ficar me olhando, mas não deu nem a mão. Nunca mais uso essas porra dessas malas (risos)”.
A mala realmente vai ser aposentada. Alan comprou uma mesa de som por R$250 só pra aproveitar o case que vinha junto. Apesar da bagagem pesada e da pouca solidariedade do povo que circulava pela rodoviária do local, Alan chegou na casa de Felipe Ribeiro, vocalista da XConfrontoX, e descarregou a raiva fazendo o que curte: alimentando o povo presente e vendo o riso largo na cara da galera. Um dia depois, já na capital fluminense, foi Leonardo Panço, da banda Jason, que experimentou as iguarias cruelty free do rapaz. “Ele curtiu muito, mas me deu um esporro. Me perguntou como é que eu ia ficar tanto tempo na estrada sem datas marcadas para minhas apresentações.”
Apesar de ter conquistado os estômagos da Baixada e da galera do Rio, Alan continuava no estilo franciscano de viver: com bolso vazio. “No almoço com o pessoal do XConfrontoX e no churrasco vegano que o Panço foi eu não ganhei nada e ainda precisava gastar R$9 pra mandar passar meu uniforme para a apresentação no Festival Vegano Internacional.”
Pois é, o evento internacional voltado ao veganismo era a principal data de Alan, mas, por culpa de um amigo carioca que insistiu que ele esperasse por uma carona, ele chegou atrasado e faltou à própria aula. “Cara, deu vontade de sentar e chorar.” Como o lema da tour era No fim sempre dá certo, Alan chorou as pitangas para a coordenadoria do evento e conseguiu horário para o dia seguinte, com um porém: seu estilo junkie food vegana teria que dividir espaço com os crudíveros, aquele povo zen, de fala mansa que só cozinha legumes e verduras até a temperatura de 45º. “É uma vertente a que eu não pertenço, sou cozinheiro vegano trash que quer conquistar o público pelo sabor mesmo. Falo alto, grito, às vezes falo palavrões.”
Mas enfim, apesar de ter que ser removido para o horário dos que comem cru, ter que aturar umas tias pentelhas fazendo mil perguntas e ainda se adaptar a um fogão todo modernoso do festival, Alan deu show de caçarolas no Rio. “Fiz molho funghi, molho de tomate e uma maionese. Todo mundo adorou, comeram tudo! As tiazinhas vieram me perguntar se eu fazia jantares, ficaram loucas. Isso reforça o lema de que no final tudo dá certo.”
Desandou a maionese
Depois das veganices no Estado do Rio de Janeiro, nosso ativista gastronômico desembarcou na terra da garoa, sob torrencial chuva. Foi fazer uma ponta em uma grande feira de produtos naturais que teve a ilustre presença do Sr. Excelentíssimo Presidente da República. No dia, nunca antes na história desse país choveu tanto em Sampa.
Alan chegou lá vestindo uma empapada camiseta de metaleiro e tattoos à mostra. “Tava todo ensopado, numa inhaca e com um crachá de palestrante. Fiquei nervoso, uma galera parou para ver. E na hora de fazer a maionese não é que aquela porra desanda? (risos)” Seguindo um estilo de concentração muito próprio e entoando o mantra No fim sempre dá certo, nosso herói respirou, sorriu e mandou essa: “Bom, gente, o ponto da maionese é vocês que escolhem. Porque pode usar como molho pra salada...” O caô deu certo e o velhario presente se refestelou com o manjar sendo servido como canapés. “Foi muito foda ver as tiazinhas devorando tudo e ficando com o beiço sujo de óleo. (risos)”
Depois de lambuzar lábios alheios, Alan fez jantares e demonstrações pelo universo do hardcore, cozinhou para os caras do Dance of Days e para Rodrigo, vocalista do Dead Fish. Apesar de se divertir muito (mesmo tendo que carregar 60kg de mala por todo lado, inclusive no metrô de São Paulo), Alan deixou a cidade mais duro do que chegou. Pra completar, por conta de uma pane no sistema da CPTM, a empresa que controla os trens em Sampa, perdeu o busão para Vitória, seu próximo destino.
“Eu já não tinha mais dinheiro, os caras não iam me reembolsar. Fui no caixa eletrônico e tirei tudo o que podia do limite da minha conta universitária, R$200. Comprei a passagem e cheguei em Vitória com R$9 no bolso.”
Cozinha estilo motel
Vitória, capital do Espírito Santo, a 1.536km de casa e quase sem dinheiro. O território capixaba seria a prova dos nove para a Veg Tour. Se ali não rolasse grana, o negócio era meter as receitas no bolso, as panelas na mala, o rabo entre as pernas, dar meia volta e cancelar tudo. Mas, como já foi dito, o mantra era No fim sempre dá certo, e Alan fechou um pacote bacana para ensinar a galera de lá a se virar na cozinha sem produtos de origem animal.
“O pessoal que organizou lá conseguiu uma estrutura no Sesi. Mano, tudo muito profissional, a cozinha tinha até espelho no teto. Fiquei a aula inteira querendo fazer uma piada que aquilo parecia um motel, mas como tinha uma senhora de idade na turma, preferi deixar quieto.” A etapa capixaba foi sold out. No total, 40 alunos presentes e outros 10 olhando tudo pelo lado de fora. Com as finanças em dia e fiel ao estilo asterisco de logística, o desafio agora era encarar 24 horas de estrada até Aracaju.
Chegar em uma cidade nunca antes visitada, ter que ensinar pessoas a cozinhar sem matar bichos e sequer saber quem é o contratante foi rotina. “Mas, em Aracaju, desci do busão e já vi um cara tatuado, outro com camiseta de hardcore e a mina com alargador na orelha e óculos Wayfarer. Eles tinham uma banda, o Renegades of Punk, que eram os mesmos integrantes do Triste Fim de Rosilene, porra, banda muito foda!” Além de se sentir mais confortável ao lado dos roqueiros sergipanos, a Veg Tour encheu o cofre por aquelas bandas. “Deu 40 alunos na sala e o acordo era que a grana das inscrições vinha toda pra mim. Aí fiquei rico. Foi a primeira vez que segurei uma nota de R$100 na mão. Tirei até foto com aquele dinheiro azul, com o desenho de um bicho que eu nem sei qual é. (risos)”
Alagoas, onde os fracos não têm vez
Alan ficou vidrado pelo Nordeste. Não só por causa do lucro financeiro que teve dando suas aulas veganas por lá, mas pela satisfação em conhecer pessoas novas e até notar as diferenças nos ingredientes. “Lá pra cima o pessoal usa muito coentro, mano. Em várias receitas tive que substituir o manjericão pelo coentro. E deu certo!” Deixando um pouco de lado o estilo porra-louca de se locomover pelo país, depois de Aracaju o cara continuou em desabalada carreira rumo ao norte, com a próxima escala em Recife.
O detalhe encagaçante de fazer a rota Aracaju/Recife via rodoviária é ter que atravessar Alagoas. Há muitas lendas sobre ônibus interceptados por bandidos e levados até os canaviais da região. Como a féria sergipana tinha sido gorda, Alan decidiu viajar sem grana mais uma vez. “Peguei o busão das 23h e cheguei lá ao meio-dia. Fiquei meio apavorado. Foi o pior busão que eu peguei. Você olha pela janela e é canavial de um lado, canavial do outro. Aí nego começou a me apavorar, dizendo que os bandidos jogavam umas toras de madeira no meio da estrada, levavam o ônibus pra dentro do Canavial e aí já era. Busão velho, ar-condicionado desligado, janela lacrada. Tentava dormir mas o joelho incomodava. E tinha aquele banco de vinil que fica grudando na perna...”
Apesar do medo, a viagem até Recife foi tranquila. A capital pernambucana foi a primeira em que o pessoal do hardcore não esteve envolvido no rolê sem lactose. “Lá quem armou a parada foi um pessoal mais ativista mesmo. Fiquei na casa de uma famíla bacana. Cheguei meio envergonhado, todo tatuado, com as malas gigantes e mochila com um patch do Doom. Mas foi muito legal, a mãe da menina que me hospedou ficava cozinhando pra mim, pra saber minha opinião.” Uma das coisas que mais marcou o paladar de Alan foi o maxixe, que é tipo uma mamona. “Me ensinaram a fazer maxixada com leite de coco. Muito Bom! Maxixe no feijão também fica bom pra caralho! No fim das contas a mãe da menina queria que eu ficasse lá mais uma semana. (risos)”
Alan declinou o convite da matriarca pernambucana. Sete dias é muito tempo para quem está em uma missão dessas. Já era hora de atingir o mais longínquo ponto da Veg Tour 2009: Natal, 4.066km do ponto de partida. Lá quem recebeu o guerrilheiro dos molhos veganos foi o pessoal da banda Kalistoga. “Na realidade quem tinha agendado era um cara do movimento hare krishna, mas como ele cancelou, o pessoal da banda me chamou pra fazer um jantar na casa deles. Deu umas 15 pessoas, foi bem legal.”
Além do jantar para os músicos potiguares, a passagem por Natal não rendeu outras apresentações. “O pessoal que tinha me chamado foi adiando, adiando, e no fim não rolou mais.” Mas foi na capital do Rio Grande do Norte que Alan imprimiu na derme a lembrança de toda a peregrinação pelo País. “Fiquei umas 12 horas dentro de um estúdio de tatuagem com os caras do Kalistoga. Eles estavam se tatuando e eu decidi fazer uma também, pra marcar o momento, a tour 2009.” O indelével desenho foi colocado na coxa direita, logo acima do joelho.
TCC sobre cena HC em PB
Engana-se quem pensa que, depois de rodar mais de quatro mil quilômetros, Alan tenha entrado num estado de esgotamento físico e mental. Como em Vitória ele tinha conhecido um paraibano que se interessou por seus conhecimentos, lá foi ele para João Pessoa. A essa altura as malas já pesavam mais de 70kg, e o carrinho que as carregava já tinha sido consumido pela artrose. Mesmo assim, em solo paraibano a missão era dar a clássica aula e também participar de uma palestra sobre o faça-você-mesmo. “A aula foi bem louca, fizeram em um lugar que não tinha muita estrutura. Foi escurecendo e não tinha energia, aí foram acendendo uns bicos de luz no lugar. (risos)”
Já a palestra sobre do-it-yourself não o pegou tão animado. “Eu já estava em outra pilha, apaixonado por esse lance de ser cozinheiro em tour e cada vez menos na pilha do rock. Porra, eu não sabia que uma tour vegana poderia dar tão certo, ser tão gratificante. Mas fui lá, sentamos, tinha umas oito pessoas nos olhando e o resto do povo lá fora, tomando uns goró.”
Na hora, Alan resgatou o lado HC/punk mais ranzinza e mandou a martelada: “’Negócio é o seguinte, o que tá acontecendo aqui é o que acontece no hardcore. As pessoas não estão interessadas em informação, só querem ficar consumindo uma estética. Não existe cena, existem pessoas que fazem e, no final das contas, é isso o que interessa.’ Deu aquele silêncio, um cara que tinha feito o TCC dele sobre a cena HC começou a reclamar. Ah, eu avisei que não queria fazer esse negócio de palestra HC (risos). Fui meio inconveniente. Mas o legal é que os organizadores, de certa forma, também achavam o mesmo.”
Apesar de a cena hardcore de vários estados nordestinos ter mais ou menos as mesmas características das do sul do País, o choque cultural foi inevitável durante a passagem por lá. “Uma vez eu tava passando na frente de uma balada mais humilde, saca? Aí tinha umas minas conversando na frente... Uma delas simplesmente se agachou e começou a mijar ali mesmo, na rua. Tentei disfarçar, mas a galera que tava comigo percebeu que eu fiquei chocado.”
Pelourinho vegan. A R$1.
Viajando tanto tempo pelo Nordeste, uma hora seria inevitável. Em dado momento, Alan Chaves desembarcou na Bahia de Todos os Santos. E curtiu. Pra ele, por incrível que pareça, ser vegan por lá pode ser mais simples e barato. “Cara, em Salvador o Acarajé sem camarão é vegano, e nos bairros eles vendem a R$1. Tem outro lance muito bom também que é o abará, uma massa de mandioca. Tem o bolinho de estudante, que é de mandioca doce com canela. Cara, é gostoso demais. Em São Paulo é óbvio que tem um monte de opção, mas é bem mais caro.”
Ministrando suas aulas por lá, entre uma apresentação e outra dava tempo de correr para visitar os mercados públicos e feiras da região. Aí o negócio não ficava tão cruelty free assim. “Tinha uma banca no mercado que vendia olho de boi, cara. Era um monte de olho de boi sobre a mesa do cara. Dava vontade de chegar e perguntar: ‘Que porra é essa, meu?!’. Em outro lugar tinha um corredor só de tripas. Parecia um clipe do Canibal Corpse.”
Porcos sendo vendidos vivos, carne pendurada, frangos sendo oferecidos em sacos plásticos já estufados sob um sol a pino, tudo isso com muito gato em volta, porque, sabe como é... Gato serve pra comer rato. “Mas eu gostava desses lugares. Todo mundo no Nordeste queria me levar pra tirar foto na praia, conhecer praia. Mas eu pedia sempre pra me levarem nas feiras, nos mercados públicos. Sempre pedia pra me levarem nos mais sujos mesmo, nos mais nojentos. Eles não acreditavam. Não pisei na areia da praia.”
Se o negócio era se manter longe da areia e do mar, o próximo destino seria perfeito: Belo Horizonte. Por lá, Alan ministrou seu show vegetariano seguindo o improviso. A aula rolou em um consultório místico, algo próximo ao reiki, segundo ele. “Tinha uma boca de fogão que era para ser ligada num liquinho, mas o bagulho foi conectado num botijão grande, o que é até perigoso. O fogo ficava alto e fazendo um barulho do cacete, e eu tinha que ficar gritando pra dar aula. Foi cômico.”
Em BH, Alan indica uma visita ao Espaço Estilingue. “Esse lugar é louco, cara. Tem um mural com um espaço onde as pessoas escrevem o que precisam e outro espaço para escrever o que podem dar em troca.”
Alimentando os ursos
De volta ao Sudeste, depois de Minas Gerais Alan montou novamente acampamento em São Paulo. O destaque da segunda passagem pela cidade ficou na intervenção Salvando seu Pão com Soja, dada no Espaço Impróprio, durante o show da banda Massacre em Alphaville. “Essa banda eu destaco. É do caralho. O lugar é muito bacana também, é uma casa com cara de squat, onde os shows rolam no porão.”
Depois de alimentar e instruir os jovens do Espaço Impróprio, o cozinheiro itinerante foi para, como ele mesmo definiu, o evento mais divertido da turnê. “Fiz um jantar na casa de um amigo meu que é do HC e é gay, ele é gay urso, saca? Aqueles gordinhos peludos. Apareceram vários amigos dele e um deles tinha até uma pata de urso tatuada nas costas. Sabe quando dá dor no estômago de tanto rir? Era uma galera muito divertida, muito pra cima.”
Em caso de tédio, aperte a boca do Louro
Depois de sair são e salvo da jaula dos ursos, Alan Chaves imbicou rumo ao sul. Em Blumenau, voltou ao ambiente acadêmico e deu aula para alunos de uma faculdade de Nutrição da cidade. A estrutura era de ponta, e mais uma vez a cozinha tinha espelhos no teto. Só depois de fechada a matéria é que descobrimos o porquê do teto espelhado (para ver o que o mestre faz lá na frente da sala, meter a cabeça pra cima faz você ter a visão do que tá rolando dentro da panela do professor. Bingo!).
Na cidade em que as loiras deslizam pelas calçadas impecáveis, Alan não alimentou ninguém, só mandou fazer. Como não é muito chegado nesse negócio de sala de cátedra, já chegou zoando e promoveu a estreia do Louro José (sim, o papagaio da Ana Maria Braga), boneco que tinha sido comprado dias atrás, na estrada, e disparava frases ao receber uma pressão no bico. “Não gosto de silêncio na minha aula. Quem se sentir entediado vem aqui e aperta a boca do Louro, ok?”, avisou à classe. Foi esse o jeito que o cara cruzou o País: cozinhando, conquistando as pessoas pelo humor e pelo estômago. Tudo sem ingredientes de origem animal, é bom ressaltar.
Depois de tanto tempo na estrada, finalmente chegou o momento de meter a chave no portão de casa, se livrar de mais de 70kg de malas, usar o próprio banheiro e dormir na própria cama. Porto Alegre, cidade onde reside, serviria como intervalo para as duas últimas apresentações da tour: Rio Grande e Gramado. Mas não! Querendo sossego e mais nada, viu seu lar sendo invadido por Diego Casas, argentino vocalista da banda Jersey Killer e mundialmente conhecido pela sua verborragia.
“Caralho, mano, eu acho que àquela altura do campeonato eu merecia um dia de descanso na minha casa, não? (risos)” Sem folga, o negócio foi subir a serra gaúcha, rumo a “europeia” Gramado. A mãe de Alan fez questão de ir junto, pra assistir à aula do filho, e acabou que toda a família foi junto, de carro. O local da apresentação era um condomínio luxuoso, para gente de fino garbo. “O legal foi isso: nessa tour fui de squat a condomínio de luxo. Lá em Gramado o lugar tinha piscina aquecida, e cada prédio tinha uma saída envidraçada até o deck pra ninguém tomar choque térmico. Tinha sauna, cinema... Os caras eram muito gente fina. O foda lá é que tive que mandar minha mãe calar a boca na aula. Ela não parava de falar. (risos)”
Depois de chegar quase ao Oiapoque, Alan terminou a tour quase no Chuí. Foi na cidade de Rio Grande que ele encerrou o extenso rolê vegano. Ironicamente, em uma classe composta, na maioria, por gente que come carne. Frustante? Nem pensar. “Uma das pessoas que coordenou a oficina se lamentou por não ter muitos vegetarianos na aula. Eu achei legal, os vegetarianos já sabem as opções, gosto de ter contato com esse pessoal que ainda não sabe nem o que é vegetarianismo.”
E foi isso. Alan Chaves foi do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte cozinhando, ensinando, aprendendo e, na moita, sem estardalhaço nem discurso panfletário, talvez tenha conseguido que muito onívoro, enfim, abandone o boi na brasa de domingo. O que ele quer mais? “Eu quero tudo, né? Quero fazer minha segunda tour no próximo ano, quero fazer a faculdade de gastronomia, quero aprender mais... No fim, tudo dá certo.”
Fonte: www.avoid.com.br
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