Direito dos animais é alvo de preconceitos, diz promotor
Laerte Fernando Levai, autor do livro Direito dos Animais, também elaborou uma tese jurídica que defende a criação de uma promotoria especializada na defesa animal.
Ainda existe preconceito quando se fala em direito dos animais. Muita gente, da área jurídica inclusive, não leva a questão a sério
, a opinião é do promotor de justiça, Laerte Fernando Levai, que atua na cidade de São José dos Campos (SP). Para ele esse preconceito é fruto de uma cultura tradicional antropocêntrica. Mas que lentamente está mudando, e passa a aceitar a inclusão dos animais na esfera das considerações morais humanas. Porém, Levai ressalta que a questão “não é apenas jurídica, mas, sobretudo, educacional”.
Laerte Fernando Levai, autor do livro Direito dos Animais, editado pela Editora Mantiqueira, também elaborou uma tese jurídica que defende a criação de uma promotoria especializada na defesa animal, “capaz de estender a noção de direitos fundamentais para além dos homens. Isso certamente ajudaria a corrigir uma injustiça histórica que, há séculos, recai sobre os animais”.
Levai defende que todos os animais merecem essa tutela especializada que seja prestada pelo Ministério Público. Uma defesa irrestrita englobando os animais silvestres, domésticos, domesticados, nativos ou exóticos. “Pouco importa sejam aves em risco de extinção, vacas leiteiras ou cães errantes”. E completa, “todos os animais têm direito a uma vida sem sofrimento. Considerando o cenário desolador que se vê em todo o país, em que os índices de crueldade são alarmantes, isso por si só já justificaria a criação de uma promotoria comprometida com o interesse dos animais”.
Em seu trabalho, como promotor de justiça, Levai atua na área criminal, ambiental e agasalha a tutela jurídica dos animais. Especialista em bioética pela USP (Universidade de São Paulo) é membro do Laboratório de Estudos Sobre a Intolerância, da mesma universidade.
Existe uma campanha que defende a criação da Primeira Promotoria Especializada em Defesa Animal no Estado de São Paulo. Levai está confiante no êxito desta iniciativa que representa um “grande avanço moral estender o conceito de dignidade a outros seres capazes de sentir e de sofrer”. Veja a íntegra da entrevista que Laerte Fernando Levai concedeu ao Observatório Eco, com exclusividade.
Observatório Eco: Apesar das leis existentes no Brasil os animais continuam desprotegidos pelo homem, isso é reflexo de um problema cultural? Essa atitude pode ser superada algum dia?
Laerte Fernando Levai: Sim, para isso precisamos aprender a pôr a teoria na prática. Em termos legislativos temos leis suficientes para exercer a tutela dos animais, a começar pela norma constitucional do artigo 225 parágrafo 1º, inciso VII, que veda atos de crueldade para com eles.
O problema maior é dar visibilidade e eficácia à lei ambiental, cujo artigo 32 considera crime abusar e maltratar animais. Mas aos poucos a cultura tradicional antropocêntrica vai mudando, de modo a já aceitar a inclusão dos animais na esfera das considerações morais humanas. A questão, portanto, não é apenas jurídica, mas, sobretudo, educacional.
Observatório Eco: Se a própria lei já admite que o Ministério Público deve zelar pela fauna, o que impede um tratamento mais eficiente no cumprimento dessa obrigação?
Laerte Fernando Levai: Ainda existe preconceito quando se fala em direito dos animais. Muita gente, da área jurídica inclusive, não leva a questão a sério. Daí as dificuldades em obter alguma medida em favor dos animais, seja na esfera administrativa, seja no âmbito judiciário.
Isso, entretanto, não deve ser motivo de desânimo, pelo contrário, basta ver as lições da história para concluir que as lutas pela libertação sempre foram árduas e prolongadas.
Atualmente, há uma corrente doutrinária que defende a visão biocêntrica da natureza, o que significa conferir dignidade e direitos a outros seres vivos sensíveis, que não apenas da espécie humana.
Se o Ministério Público tivesse uma promotoria especializada na defesa animal, capaz de estender a noção de direitos fundamentais para além dos homens isso certamente ajudaria a corrigir uma injustiça histórica que, há séculos, recai sobre os animais.
Observatório Eco: De que forma a criação da 1ª Promotoria de Defesa Animal do país, na cidade de São Paulo, pode garantir uma proteção eficaz para os animais?
Laerte Fernando Levai: Essa promotoria poderia fazer um trabalho revolucionário em defesa das criaturas sencientes vítimas de agressões, de intolerância ou da indiferença humana.
Contribuir para uma mudança de paradigma, a fim de que os animais sejam considerados em seu valor inerente, fins em si mesmos, não em função daquilo que porventura possam servir ao homem.
Devemos proteger o animal pelo que ele é, em sua dignidade e direitos, independentemente de seu valor instrumental. Esta é proposta ética da promotoria de defesa animal.
Observatório Eco: A criação de uma promotoria especializada deve ser feita através de uma lei estadual, mas também precisa da autorização do Ministério Público para ser criada?
Laerte Fernando Levai: O cargo de promotor de justiça, para ser criado, depende de lei estadual, conforme previsão expressa na Lei Orgânica do Ministério Público, cabendo tal iniciativa ao Procurador Geral de Justiça.
Observatório Eco: Por outro lado o Ministério Público já tem as promotorias do meio ambiente que tratam da defesa dos animais, por que a iniciativa de especialização nunca foi questionada antes?
Laerte Fernando Levai: A prioridade das promotorias do meio ambiente, como o próprio nome diz, é o ambiente. Já a promotoria de defesa animal deve se preocupar com os animais de forma ampla. Tenham eles ou não importância ecológica.
Assim sendo, todos os animais irão merecer a tutela ministerial, silvestres, domésticos, domesticados, nativos ou exóticos. Pouco importa sejam aves em risco de extinção, vacas leiteiras ou cães errantes. Todos os animais têm direito a uma vida sem sofrimento.
Considerando o cenário desolador que se vê em todo o país, em que os índices de crueldade são alarmantes, isso por si só já justificaria a criação de uma promotoria comprometida com o interesse dos animais, o que, em última análise, repercutiria em favor da própria sociedade humana, sabido que “violência gera violência”.
Observatório Eco: Em sua opinião você acredita que seja criada a Promotoria de Defesa Animal?
Laerte Fernando Levai: Com certeza, acho que nosso país e suas instituições já amadureceram o suficiente para dar esse importante passo. Seria um grande avanço moral estender o conceito de dignidade a outros seres capazes de sentir e de sofrer.
O discurso em favor dos direitos animais não é utópico, ele representa apenas uma face da postura ética que se deve assumir quando se busca um mundo melhor para todos.
A campanha idealizada nesse sentido por Maurício Varallo, do Sentiens, já mostrou a que veio: mais de 12 mil pessoas assinaram a lista em favor da criação da primeira promotoria especializada em defesa animal do país. Espera-se que o Ministério Público paulista seja mais uma vez pioneiro, honrando suas tradições históricas.
Observatório Eco: Em quais as atividades a nova Promotoria deve se focar? Ou seja, qual o trabalho a ser feito e de que maneira deve ser realizado?
Laerte Fernando Levai: Trabalho é o que não faltará aquele que estiver à frente dessa promotoria, mesmo porque as atribuições do cargo devem ser cumulativas, cível e criminal. Além de processar aqueles que maltratem animais, caberá ao promotor agir preventivamente para que tais situações sejam evitadas. Para tanto, recomenda-se celebrar convênios com outras entidades – públicas ou privadas – a fim de alcançar esses objetivos todos.
E sem esquecer que a questão educacional precisa ser trabalhada de forma paralela, a fim de que os jovens aprendam desde cedo a amar e a respeitar os animais.
Para cumprir esses objetivos todos, jurídicos ou pedagógicos, o promotor possui instrumentos suficientes que a própria lei põe à sua disposição: denúncia, poder requisitório, inquérito civil, termo de ajustamento de conduta, ação civil pública etc.
Observatório Eco: Recente decreto 55.373, de 28 de janeiro de 2010 de São Paulo, institui o Programa Estadual de Identificação e Controle da População de Cães e Gatos, que autoriza a Secretaria do Meio Ambiente, representando o Estado, a celebrar convênios com as prefeituras visando à implementação do referido Programa. Esse programa basicamente trata da necessidade de promoção de esterilização cirúrgica. Não há a preocupação, por exemplo, com a saúde do animal, apenas o legislador se preocupa com o controle da população de cães e gatos e de sua vacinação periódica. Não há postos que ajudem a população a tratar os animais quando eles adoecem, por exemplo, o que pode ser feito nesse aspecto para que o Estado crie postos em que veterinários públicos cuidem dos animais?
Laerte Fernando Levai: Essa é outra questão que precisaria ser enfrentada pela promotoria de defesa animal. Um serviço de assistência veterinária pública é imprescindível para atender os animais errantes, em regra cães e gatos, que merecem ser provisoriamente acolhidos, tratados, vacinados, vermifugados, esterilizados e colocados para adoção.
Também é necessário ficar atento para os abusos normalmente cometidos sobre os animais usados em veículos de tração. Isso sem falar naqueles destinados à recreação pública, à vivissecção e à criação industrial. Uma lista que parece não ter fim…
Observatório Eco: Existe um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que pretende alterar o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, que visa retirar a proteção legal dos animais domésticos. O que significa essa alteração e quais as conseqüências dela se for aprovada?
Laerte Fernando Levai: Essa proposta de alteração legislativa, se aprovada, representaria um retrocesso jurídico sem precedentes em nosso país, fazendo com que o atual crime de maus tratos a animais (artigo 32 da Lei 9.605/98) voltasse a ser simples contravenção (artigo 64 da Lei de Contravenções penais), cujas penas são irrisórias.
O autor desse infeliz PL pretende retirar os animais domésticos e domesticados da proteção legal, gerando assim tratamento desigual entre as espécies. Tudo leva a crer que tal alteração será rejeitada em Brasília, mesmo porque ela viola a norma protetora ampla consagrada na Constituição Federal.
Observatório Eco: Uma dúvida, a lei sempre fala em vida animal e a vida marinha se enquadra nesse conceito? Pois na vida marinha o desrespeito também é absoluto e pouco se faz também pela proteção da vida marinha. O Ministério Público também não deveria ser especializado nessa área?
Laerte Fernando Levai: A defesa da vida animal, para ser exercida em plenitude, não deve ter fronteiras. Se os animais marinhos são seres sencientes, como de fato o são, eles também merecem consideração e respeito.
Já existe, aliás, a Lei dos Cetáceos, de atribuição do Ministério Público Federal. Afora essa hipótese ou aquela relacionada à fauna em risco de extinção, quase todas as outras situações de crueldade para com animais incumbem ao promotor de justiça, cuja grandeza das funções é justamente defender fracos, oprimidos e vulneráveis. A tutela dos animais, enfim, faz parte desse desafio, em que o objetivo final é a busca de uma sociedade pacífica e verdadeiramente justa.
Para conhecer mais sobre a campanha pela criação da Primeira Promotoria Especializada em Defesa Animal, clique aqui.
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